‘O jogador mandou um torpedo que nenhum goleiro conseguiria defender.’ Pergunta-se: a frase acima está correta? Linguistas fazem essas perguntas a si mesmos e a outros em seu cotidiano como parte de seu trabalho.
Se isso parece absurdamente trivial – e, portanto, não digno de ser estudado academicamente –, vale dizer que se trata de tarefa muito mais séria do que pode parecer à primeira vista.
este de aceitabilidade linguística é uma das maneiras de explorar os muitos recônditos da linguagem humana. Um melhor entendimento de como funcionam as regras da língua, em última análise, leva a aplicações muito úteis, como a elaboração de programas avançados de computador voltados à tradução, bem como de cursos mais eficientes de línguas estrangeiras. Ou até mesmo à ajuda da resolução de crimes, na área de linguística forense.
Sem dúvida, esses benefícios – e mais uma ampla gama de outros semelhantes – justificam vários métodos de colher dados, incluindo o chamado ‘estudo de intuição linguística’, que aqui está representado pela frase que inicia este artigo – afinal, aquela frase está ou não correta?
Quem disse isso?
Um problema com intuição linguística é que falantes nativos quase nunca concordam entre si sobre a gramaticalidade de frases, especialmente as mais criativas ou figurativas. Enquanto alguém pode achar uma frase perfeitamente natural, outro pode torcer o nariz para o estilo ou o emprego ‘estranho’ de expressões.
Nessa questão, quase não existem frases perfeitas. Pode-se dizer que, caso se mostrasse a uma pessoa certa frase do hino nacional de seu país, haveria, ainda assim, aquele que iria apontar erros no trecho.
Outro problema é que a mesma pessoa, muitas vezes, muda de opinião, dependendo de seu ânimo ou de sua atenção. E mais importante: importa (muito) quem diz a frase. Assim, é mais fácil aceitar como correta uma frase dita por uma notoriedade, como o escritor Jorge Amado (1912-2001) – afinal, um grande escritor deve saber falar bem; quem somos nós para criticar o português dele?
Também faz sentido manter certo ceticismo perante expressões oriundas de pessoas de baixo nível de escolaridade, já que tendemos a achar que elas são mais propensas a cometer erros de linguagem.
Nem objetivos, nem justos
Se o leitor concordar com essa lógica, isso significa que estamos nos deparando com um preconceito que pode trazer estigma para falantes com pouco prestígio social, mesmo os bastante eloquentes. Isso é exemplo daquilo que em psicologia é denominado ‘percepção seletiva’, termo que significa a tendência de reparar no que já sabemos e ‘cegar-nos’ para o que não se encaixa com nossas opiniões.
Dito de forma mais direta, percepção seletiva é um mecanismo responsável pelo fato de nós não sermos observadores nem muito objetivos, nem muito justos. Por exemplo, como mostraram estudos experimentais, ao assistirem a um jogo de futebol, os torcedores acreditam ter visto menos faltas cometidas por seu time do que pelo adversário. Já os torcedores deste último alegam que seu time cometeu menos faltas que o oponente. Que importância pode ter tal fato?
Se esse preconceito realmente tiver lugar na linguagem, isso pode ter consequências bem graves, porque, como argumentam sociolinguistas, pessoas vistas como menos competentes podem, por exemplo, sofrer discriminação e ter mais dificuldade em encontrar emprego. Mas é realmente assim?
Na pesquisa científica, não se pode aceitar constatações sem verificá-las, por mais óbvias que possam parecer. Não seria nada profissional admitir que expressões usadas por pessoas com baixos níveis de escolaridade são percebidas como menos corretas do que as frases ditas por quem tem formação acadêmica.
Brasil versus Polônia
Foi por isso que conduzimos um estudo em que frases foram apresentadas para quase 500 pessoas no Brasil e na Polônia. No Brasil, o estudo foi realizado graças ao Instituto Ciência Hoje (ICH): foram principalmente os leitores da CH On-line que responderam à nossa chamada e avaliaram nove frases em língua portuguesa apresentadas em um questionário on-line. Todas as frases tinham a ver com futebol e continham expressões idiomáticas e metafóricas.
Uma peculiaridade desse estudo foi o fato de que as frases vinham com ‘legendas’ descrevendo a fonte – ou seja, quem as estava dizendo. Assim, uma frase foi seguida, por exemplo, pela legenda ‘Marco de Andrade, colunista, jornalista e autor de livros sobre esportes’. Outra vinha com a legenda ‘Murilo, 27, membro da torcida organizada’. E outra com ‘Wolfgang, Alemanha, estudante de intercâmbio UFRJ’ todas elas pessoas fictícias, inventadas para os propósitos da pesquisa.
Cada frase era acompanhada de uma escala, na qual os respondentes davam notas de 1 (frase incorreta) a 5 (frase correta, sem problemas linguísticos), como mostra a figura acima.
Konrad Szczesniak
Instituto de Língua Inglesa
Universidade da Silésia (Polônia)