Há cerca de 200 anos, designamos por ‘fotografia’ uma variedade quase infinita de imagens. A junção do prefixo foto (φωτoς, photós: luz, claridade) com o sufixo grafia (γραφειν, gráphein: grafar, escrever), ambos de origem grega, formou o novo vocábulo, incorporado a todos os idiomas no decorrer do século 19 (fotografia, photography, photographie etc).
A difusão da palavra inspirou-se no fato de que a recente invenção de um tipo de ‘escrita’ por meio da ação da luz era uma tremenda novidade e, portanto, exigia do mundo científico um nome original e apropriado para batizá-la. Desde então, os sentidos que lhe são atribuídos se diversificaram bastante, mas, de modo geral, seu uso continua servindo para caracterizar a imagem resultante da fixação de qualquer elemento visível sobre uma superfície fotossensível (fotografia/fotografias).
A palavra também passou a ser empregada para definir o conjunto de procedimentos técnicos ou a ação destinada a obter tal resultado (‘a’ fotografia). Com ela, designamos todas as imagens fotográficas que formam o imenso patrimônio visual guardado em álbuns e livros, assim como em arquivos, bibliotecas e museus espalhados pelo mundo afora. Pelo mesmo nome, chamamos as imagens onipresentes em nossos celulares, computadores e demais mídias eletrônicas.
Mas a natureza físico-química do que ainda vemos como uma ‘fotografia’ já não é mais a mesma de antes. Muita coisa mudou depois que a revolução digital, na segunda metade do século passado, tornou obsoletas as formulações químicas e os procedimentos técnicos tradicionalmente usados na obtenção de uma fotografia convencional, isto é, por processo analógico. Hoje, muitos preferem tratá-la, mais precisamente, por imagem digital (digital imaging, em inglês; système numerique, em francês).
A persistência da noção de uma natureza ‘foto-gráfica’ nas imagens que povoam nosso cotidiano não deixa de ser reveladora da existência de uma longa – e já sedimentada – cultura histórica, visual e técnico-científica ligada à fotografia, seus fundamentos e suas práticas.
Os novos componentes da eletrônica incorporaram à obtenção de imagens digitais os componentes ópticos largamente conhecidos no mundo fotográfico (câmara, obturador etc.), ainda que os minúsculos cartões de memória acoplados aos equipamentos atuais arquivem apenas sinais que, por sua vez, são capazes de transformar as informações luminosas em matrizes de impressão, se assim desejarmos.
No entanto, a maior parte das fotografias que criamos não chegará jamais a uma folha de papel, porque agora, além da quantidade infindável de imagens, também já nos acostumamos a vê-las, preferencialmente, na tela de nossos equipamentos eletrônicos.
Primazia e disputa
Ao longo da história da fotografia, a luz nunca deixou de ser um elemento essencial (e definidor) desse tipo de imagem. Com a fotografia analógica – e, agora também, com sua versão digital –, incorporamos um novo meio de comunicação que pode até prescindir de outros modos ancestrais, como o gesto, a fala, o alfabeto e a escrita (textual), para criar, transmitir ou compreender mensagens, mas não pode dispensar a ação da luz, seja ela natural ou artificial.
Dotada de imenso valor simbólico, a luz tem sido associada ao conhecimento e à razão desde tempos bem mais remotos à sua aplicação na fotografia e, por esse motivo, legou ao novo invento parte de seu fascínio e sua sedução. Indispensável à vida e à visão, fonte de inspiração para a ciência e a arte, a luz é personagem insubstituível da história das imagens fotográficas.
Pintores, gravadores, cientistas e inventores, em geral, procuravam explorar os avanços da física e da química para a captação de imagens pela câmara escura e sua fixação e reprodução por meio de processos físico-químicos, em suportes como o papel e o metal. A daguerreotipia (processo fotográfico sobre metal) foi, então, anunciada pelos franceses, em janeiro de 1839, como a grande novidade do momento, cujos segredos de execução seriam posteriormente revelados ao mundo em uma reunião da Academia de Ciências de Paris.
Nos meses seguintes, as notícias sobre aquela invenção correram o planeta, comentadas pela imprensa de diversos países. Como outras invenções, a daguerreotipia era ‘um’ processo fotográfico, e a sua invenção, o resultado da convergência de descobertas e experimentações de múltiplos atores. Mas a novidade foi anunciada como a invenção ‘da’ fotografia e logo trouxe consigo um bom número de disputas envolvendo inventores e seus países de origem.
A disputa pela primazia na invenção de um modo de escrever e imprimir imagens pela ação da luz logo se estendeu à disputa pela prioridade no uso da palavra fotografia. Na Inglaterra, o cientista John Herschel (1792-1871), realizando experiências com o escurecimento dos sais de prata pela ação da luz, descobriu as propriedades do hipossulfito como fixador, fato então divulgado no meio científico. A informação deu ao francês Louis Daguerre (1787-1851), pintor e cenógrafo, a ideia de empregar essas propriedades no procedimento que vinha trabalhando, batizado pouco depois com seu próprio nome.
Nesse ambiente de aprendizados recíprocos e experimentações aceleradas – mas também de disputas entre ingleses e franceses pela anterioridade das experiências fotográficas –, a palavra ‘photography’ foi usada por Herschel em uma comunicação na Royal Society, de Londres. Não demorou nada para que ela fosse adotada pela comunidade científica internacional. Em julho de 1839, o astrônomo francês François Arago (1786-1853) já se referia à invenção da daguerreotipia usando tão somente a palavra ‘fotografia’, a exemplo dos jornais franceses e da imprensa de todo o mundo.
Maria Inez Turazzi
Laboratório de História Oral e Imagem
Universidade Federal Fluminense