Causa surpresa saber que o primeiro livro impresso sobre o Brasil foi publicado em Marburg, na Alemanha, em 1557. Mas as políticas monopolísticas de Portugal ditavam sigilo sobre sua nova colônia e, enquanto isso, as primeiras notícias sobre o Novo Mundo saíam das prensas italianas e alemãs.

O livro de Hans Staden ecoa os lugares-comuns propagados por impressos na primeira metade do século 16 sobre a América. O título estampado em vermelho anuncia a “história verdadeira” de uma gente “nua, feroz e canibal”, vivida e narrada pelo próprio viajante “Hans Staden von Homberg” e divulgada de forma inédita pela imprensa.

O livro de Staden teve um papel destacado na formação de um imaginário sobre o novo mundo e seus antigos habitantes

Se hoje basta dar um clique no mouse ou no controle remoto para acessar lugares desconhecidos, no século 16 o livro impresso era o principal, senão o único, veículo à disposição dos curiosos. O livro de Staden, rapidamente disseminado pela imprensa em sucessivas edições e traduções, teve um papel destacado na formação de um imaginário sobre o “Novo Mundo também chamado América” e seus antigos habitantes.

Tão extensa e variada é a história desse livro que seria impossível sintetizá-la aqui. Na Europa, a história sensacional do cativeiro de Staden e as inúmeras ilustrações originais renderam ao livro tamanha popularidade que alguns estudiosos o consideram um dos primeiros best-sellers europeus.

Hans Staden
Hans Staden ficou sob a guarda dos tupinambás por cerca de nove meses. (ilustração: H. J. Winkelmann)

Para dar apenas uma ideia de sua repercussão no Brasil, basta lembrar que, após ser transformado por Monteiro Lobato (1882-1948) em verdade histórica palatável ao público infantil, em 1927, inspirou Nelson Pereira dos Santos a contestar, no filme Como era gostoso o meu francês (de 1970), a autoridade dos primeiros textos coloniais.

No âmbito da etnografia e da história dos índios tupinambás, as interpretações da antropofagia como um ritual de vingança e como distinção pessoal, introduzidas no livro de Staden, seriam retomadas, respectivamente, nas obras do sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

Edições recentes em português e outras línguas atestam a atualidade e o fascínio exercido pelo livro, que ao longo dos séculos acumulou leitores de culturas tão diversas e distantes no tempo e no espaço. É notável, nesse sentido, que desde sua publicação a narrativa de Staden se origine de contextos marcadamente distintos: a Alemanha protestante e o Brasil colonial. 

Como a coincidência entre uma experiência colonial e um contexto de publicação não colonial molda a ‘história verdadeira’ do livro?

Por ser um dos mais importantes registros documentais sobre o Brasil colonial, é preciso indagar como a coincidência entre uma experiência colonial e um contexto de publicação não colonial molda a ‘história verdadeira’ do livro.

Neste ensaio, tomando como ponto de partida aspectos materiais da edição original de 1557, tentaremos responder a essa pergunta. Convidamos o leitor a um exercício de imaginação histórica que lhe permita dedicar atenção e cuidado às formas do passado que chegaram até nós.

 

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Luciana Villas Bôas
Departamento de Letras Anglo-Germânicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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