A longa história da ciência também é escrita graças ao acaso. Afinal, quem diria que uma estagiária, em seu primeiro dia de campo, encontraria uma ave mutante, que mudaria tudo o que se sabe sobre o vermelho que dá o colorido a certos animais?
Pois assim se deu a descoberta de que alguns tangarás são capazes de produzir rodoxantina. A presença da substância já havia sido descrita em animais, mas era considerada resultado da assimilação direta pela dieta. O estudo da ave mutante mostrou que a substância é, na verdade, produzida pelos animais a partir de outros compostos presentes nos alimentos.
O caminho até a descoberta foi longo, começou em 1998, quando a ornitóloga Marina Anciães, atualmente pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), realizava coletas em uma área de mata atlântica de Belo Horizonte.
“Tínhamos montado a rede de captura das aves e uma de nossas alunas, a então graduanda Fabiane Sebaio, que estava em seu primeiro dia de trabalho, notou que havíamos capturado um tangarazinho amarelo”, conta a ornitóloga.
“Ela me mostrou, comentando que deveria ser um indivíduo de outra espécie do gênero do tangarazinho (Ilicura militaris), mas, ao olhar, percebi que era um animal da mesma espécie, mas com um colorido diferente, até porque esse gênero tem apenas uma espécie conhecida.”
Anciães suspeitou que se tratava de um mutante e partiu em busca da confirmação. Foram dois anos de investigação em museus e na literatura especializada até que sua suspeita se provasse verdadeira. Tudo poderia ter acabado por aí, não fosse a curiosidade da pesquisadora em saber o que estava por trás da mutação. “Poderia ser um indivíduo doente, ou o resultado de uma alteração somente na dieta do indivíduo”, diz.
Análises de laboratório
Na tentativa de encontrar a resposta, ela enviou penas do animal amarelo e do animal “normal”, vermelho, para análise num laboratório italiano. Lá, os cientistas descreveram todas as substâncias possivelmente relacionadas ao colorido das penas, conhecidas como carotenoides.
Foram mais alguns anos de pesquisa até que, em 2005, veio a descoberta: a cor vermelha era resultado da transformação em rodoxantina de compostos amarelos presentes nos frutos dos quais os pássaros se alimentavam.
“Comparando os dois indivíduos, vimos que, no animal amarelo, mutante, havia um precursor da rodoxantina, mas não a rodoxantina em si”, conta Anciães.
“Concluímos que faltava o passo metabólico final para produzir a substância. Encontramos também um precursor plausível nas penas dos indivíduos vermelhos, mas ausente nas penas amarelas.”
O precursor encontrado era um novo carotenoide e foi batizado de piprixantina, em homenagem às aves que deram origem a descoberta – os piprídeos, ou a família Pipridae. O trabalho descrevendo o feito, publicado em 2007, foi o primeiro a provar que animais são capazes de sintetizar rodoxantina.
Grande coincidência
“O mais curioso é que outros trabalhos, datados da década de 1970, que tentavam mostrar que alguns peixes e pombos podiam produzir a substância, foram criticados e tiveram a hipótese não aceita pela comunidade científica exatamente porque não apresentavam um mutante para fazer a comparação”, diz a pesquisadora. “A verdade é que foi uma grande coincidência termos encontrado esse único indivíduo amarelo”, diverte-se.
Desde a descoberta da capacidade dos tangarazinhos de produzirem rodoxantina, os cientistas investigam se outros pássaros da família dos piprídeos podem fazer o mesmo.
A continuação dos estudos traz uma ironia ao curioso caso da substância: ao que tudo indica, todos os pássaros da família podem sintetizar a rodoxantina, menos o único grupo que vinha sendo usado em estudos sobre o assunto até que a descoberta da estagiária em seu primeiro dia de campo mudasse o rumo da história.
Mariana Ferraz
Especial para Ciência Hoje/AM
Texto originalmente publicado na CH 274 (setembro/2010).