A palavra ‘crise’ tem nos acompanhado como atmosfera e segunda pele: respira-se a crise, a crise dói em todos nós. Não é difícil reunir fragmentos e indicadores de crise e, com a soma, configurar a imagem de um grande vórtice de regressão civilizatória e infelicidade coletiva. Lama tóxica, infestação de mosquitos, hábitos impalatáveis e grave deflação cognitiva na política, cinismo hiperbólico. Diante de tal composição, o espírito humano insiste em indagar: o que está a acontecer, como isso é possível? Ou, de modo mais direto: qual a causa de tudo isso?

Uma das coisas mais difíceis para cientistas, de todas as vertentes, é isolar a causa de algo. A complexidade, como cláusula básica, está em todas as coisas: não há fenômeno que não seja afetado por uma multiplicidade de causas e condições; não há causa que não tenha sido causada por algo que, por sua vez, não dispensa sua própria causa. Tanto pela complexidade causal quanto  pela vertigem da regressão ao infinito, é-nos difícil – senão impossível – detectar a causa de algum fenômeno ou evento. Todas as coisas do mundo são ‘multicausadas’, sem descartar, no confuso amálgama, o peso considerável do acaso.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos atos de imaginar condições necessárias para a superação de cenários de crise, tal como o que o Brasil hoje atravessa. Da mesma forma, é possível sugerir uma série de condições necessárias para tal, em um debate sempre aberto à controvérsia, por mais que seus participantes compareçam movidos por um espírito de certeza  absoluta. Em debates de tal natureza, com muita frequência, ‘soluções’ propostas  acabam  por fazer parte do problema. A soma das ‘soluções’ setoriais não é suficiente para configurar uma saída, por mais brilhantes que sejam suas parcelas. Há que produzir o amálgama, e quanto a isso não há milagre possível: são as artes da política que devem materializá-lo.

Mas, para além da descrença generalizada na capacidade de autorregeneração da política, cabe dar descanso ao desespero  deseducado e introduzir a seguinte questão: quais são as condições de impossibilidade de saída dos impasses que nos assolam? Em outros termos, que marcadores mais fundos da nossa experiência social aparecem como impeditivos ou, ao menos, restritivos  para  cenários mais otimistas?

Tal exercício pode ter como referência o relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 2016, a respeito do desempenho de jovens estudantes, nos domínios da matemática, leitura e ciências, em 65 países. Vale a consulta ao longo relatório

Além da ausência de motivos de comemoração, ali emerge de modo claro um dos lugares mais sombrios e resilientes da crise brasileira. O país figura entre os ‘10 mais’ no quesito desigualdade de desempenho escolar entre os mais ricos e mais pobres. Mas, os 25% mais ricos não devem ter razões de júbilo, já que 45% da casta apresentam baixo desempenho. Entre os mais pobres, o alarmante indicador é da ordem de 85%.

A calamidade pode bem ser detectada em cenário singelo: na média dos 65 países, 80% dos estudantes acertaram nos exercícios de conversão cambial, para os quais basta uma singela regra de três. Apenas 37% dos nossos jovens executam a façanha

A calamidade pode bem ser detectada em cenário singelo: na média dos 65 países, 80% dos estudantes acertaram nos exercícios de conversão cambial, para os quais basta uma singela regra de três. Apenas 37% dos nossos jovens executam a façanha. Em termos gerais, entre os 65 países, somos o 59° em matemática, 60° em leitura e 60° em ciências. A distância do insucesso brasileiro para o sucesso chinês (1° colocado) em matemática é gritante: 68,3% versus 3,8% de estudantes com baixo desempenho.

Ao que parece, inventamos uma devastadora usina de deflação da democracia. Mais do que ilusão, constitui um ato de irresponsabilidade cívica e civilizatória supor que a rarefação das capacidades de calcular, ler e intuir a complexidade do mundo não afete a qualidade da vida democrática. A crise pode estar por todo lado, mas sua face mais renitente repousa impávida em grave quadro de recessão cultural e educacional.

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Renato Lessa
Fundação Biblioteca Nacional e Instituto de Ciências Sociais,
Universidade de lisboa
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