As recentes acusações de um suposto envolvimento da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em atividades de escuta ilegal – os chamados ‘grampos’ – no Senado e no Supremo Tribunal Federal (STF) suscitaram um debate público sobre a natureza, as atividades e a legalidade dos sistemas nacionais de inteligência. Mesmo que a ‘crise’ em si já tenha passado, ela poderia trazer benefícios para a democracia brasileira, ajudando a redefinir as missões e prioridades desses serviços no país e a criar mecanismos mais aperfeiçoados de controle de suas atividades pelo Estado e pela sociedade.
Os serviços de inteligência, ou ‘serviços secretos’, existem em praticamente todos os países, inclusive aqueles em que a democracia é consolidada. Embora muitas de suas atividades, por razões óbvias, não tenham divulgação pública, espera-se que operem sob a supervisão rigorosa do Poder Executivo e estejam submetidas aos controles dos poderes Judiciário e Legislativo. Por isso, qualquer suspeita de descontrole desses serviços gera grande preocupação do público. Entre os brasileiros, o repúdio e a desconfiança costumam ser imediatos quando existem tais suspeitas. Tais reações são razoáveis, considerando os tempos da ditadura (1964-1985) e o papel que os órgãos de repressão à subversão armada e à oposição pacífica, em especial o Serviço Nacional de Informações (SNI), tiveram no regime militar.
O regime militar deixou marcas profundamente negativas no imaginário brasileiro em relação aos serviços secretos e seus ‘arapongas’, como são apelidados os agentes, além de ter afetado de forma prejudicial o próprio relacionamento entre Estado e sistemas de inteligência no período pós-autoritário. Desde o período de transição política existiam correntes de pensamento que defendiam a extinção ou a minimização dos serviços de inteligência na democracia brasileira. Assim, sejam quais forem as razões específicas, quando o presidente Fernando Collor de Mello, o primeiro eleito pelo voto popular após a redemocratização, extinguiu o SNI em 1991, não houve oposição a essa medida. A Agência Brasileira de Inteligência e o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) só foram criados em 1999, após longo processo de negociação. Durante esses oito anos de hiato, o serviço de inteligência ficou extremamente deficitário no país, limitado a um pequeno departamento da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), na Presidência da República, ainda que os componentes de inteligência das forças armadas e da Polícia Federal tenham continuado a existir.
Ao longo desses 10 anos (1999-2009) desde a criação da Abin, houve algum debate sobre as funções, missões e mandatos específicos dos diferentes serviços de inteligência brasileiros, mas, de modo geral, como a trajetória institucional tem sido positiva, até agora não havia surgido um questionamento tão forte sobre o grau de controle democrático, no país, sobre o sistema como um todo e a Abin em particular.
Esse questionamento foi levantado após as alegações do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, de que teria sido alvo de escutas ilegais e de que a chamada operação ‘Satiagraha’, uma investigação criminal da Polícia Federal, teria contado com agentes da Abin realizando operações não autorizadas pela Justiça ou pelos órgãos decisórios superiores no próprio Poder Executivo. Embora as preocupações sejam legítimas e isso possa ter acontecido, é preciso conhecer melhor o tema, para que não se incorra em especulações infundadas que, longe de contribuírem para minimizar o problema, sirvam de cortina de fumaça para outros problemas reais.
Afinal, então, o que são sistemas de inteligência? Para que servem? Os serviços de inteligência são incompatíveis com os princípios democráticos? O Brasil realmente precisa de serviços de inteligência?
Marco Cepik e Christiano Ambros
Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul