Depois de uma década de massacres, tribos da Papua-Nova Guiné restabeleceram a paz. Um artigo de antropologia – muito elogiado – explica como se chegou a isso naquele país: parte da estratégia inclui vencedores darem porcos aos vencidos. E, por vezes, os dois lados tomarem refrigerantes juntos.
Essas decisões têm sido tomadas por uma corte de magistrados das vilas dos povos de língua enga na Papua-Nova Guiné. Esses juizados – reconhecidos pelo governo daquele país – foram retomados depois que as mortes em conflitos entre clãs bateram recordes históricos com a entrada em cena de armas de fogo, empregadas principalmente pelos jovens.
A introdução dessa nova tecnologia criou uma nova profissão: a dos ‘rambos’, mercenários armados contratados pelos clãs. Cada clã dos engas – que são horticultores e vivem em regiões montanhosas – tem entre 350 e mil membros. E cada tribo entre seis e sete clãs. Dependem do plantio da batata-doce para comer e para alimentar porcos.
As guerras em geral se dão entre clãs vizinhos e surgem por motivos diversos (ofensa, estupro, assassinato, roubo etc.). O clã ofendido deve mostrar força. Entre 1991 a 2010, foram cerca de 500 guerras entre os clãs vizinhos dos enga. O número de baixas atingiu quase 5 mil pessoas, mais ou menos 1% da população dos enga.
Antes da década de 1990, guerras eram à base de arco e flecha, e a média de mortos, 3,7 por guerra. Com rifles, espingardas e revólveres, essa razão passou a 19. Além disso, vilas, escolas, rebanhos, beneficiamentos etc. eram destruídos. Resultado: caos econômico.
Com a escalada de mortes, os membros mais antigos dos clãs retomaram a liderança, refreando ‘rambos’ e jovens. Com alguma intermediação do Estado e da Igreja, os tribunais foram retomados, pois já existia mecanismo semelhante antes do contato com os colonizadores. Parte do sucesso das decisões dessas cortes na obtenção da paz está na prática da chamada justiça restaurativa.
Por volta de 1850, antes dos contatos com europeus, os engas, como modo de selar a paz, começaram a pagar compensações para as vítimas de conflitos, usando principalmente porcos – ‘moeda’ corrente entre eles. No entanto, em 1975, depois da independência – Papua-Nova Guiné era colônia australiana –, os conflitos aumentaram, pois a paz era imposta por autoridades australianas armadas.
Por volta de 2005, com a entrada em cena dos mais velhos e a formação das cortes nas vilas, os conflitos passaram a durar menos e causar menos mortos – apesar de a quantidade de guerras ter continuado a aumentar até 2010.
Daí em diante, porém, foram poucas. “Tecnologias sociais das gerações passadas foram adaptadas para conter os impactos da adoção de novas tecnologias […] Novas instituições foram criadas com base em regras, normas e valores”, explica a antropóloga Polly Wiessner, da Universidade de Utah (EUA), que há 25 anos estuda os engas.
As cortes das vilas foram instituídas por ato governamental ainda em 1975. Sentenças comuns são a compensação das vítimas com porcos e dinheiro, que devem ser pagos por todos os membros dos ofensores.
Anos depois, os próprios engas instituíram um tipo de corte para pequenas causas – as chamadas cortes de aflições, em tradução livre –, na qual conflitos passaram a ser mediados por um ou dois líderes apenas. Aqui, a reparação pode variar. Não raramente há decisões em que as duas partes são obrigadas a tomar coca-cola juntos – antigamente, usava-se ‘chupar cana-de-açúcar’ em vez de beber o refrigerante.
Nas decisões das cortes, raramente alguém vai para a cadeia. E, também raramente, alguém é condenado a um castigo físico (surra, por exemplo). Vale dizer que, para os engas, a guerra é a última opção para resolver um conflito.
Wiessner e o coautor, o advogado cego Nitze Pupu, de Papua-Nova Guiné, analisaram dados da época pré-colonial e de 501 guerras recentes. Assistiram a 129 sessões das cortes tribais e conduziram cerca de 300 entrevistas. Isso permitiu a eles concluir sobre: i) os princípios e valores por trás de instituições para a promoção da paz; ii) a eficácia desses organismos; iii) como eles interagem com suas instituições similares no Estado contemporâneo; iv) como esses tribunais podem ter modelado o comportamento humano para tornar possível a vida nas sociedades pós-Estado.
O artigo foi elogiado, por exemplo, pelo psicólogo Steven Pinker, da Universidade Harvard, autor de livro recente que defende que a violência, diminuindo entre humanos, faz destes tempos os mais pacíficos da história (para uma crítica a essa afirmação, leia, na CH 298, entrevista com o filósofo político britânico John Gray – disponível para assinantes do acervo digital).
A tese de Pinker é que sociedades primitivas eram anárquicas e violentas e se tornaram mais pacíficas com o surgimento do Estado. Wiessner discorda. Para a antropóloga, aquelas sociedades tinham mecanismos que podiam frear a violência, como as cortes dos engas.
A dúvida de Wiessner e Pupu é a seguinte: os engas serão capazes de manter esse tipo de mecanismo para a paz à medida que se tornarem mais integrados com o restante da nação e, portanto, com uma economia global? Em tempo: em busca de fotos de Wiessner e Pupu para ilustrar esta nota, esta seção chegou a um álbum particular na internet, com imagens de Silas Larsen, pós-graduando em neurociências e ciências cognitivas da Universidade de Maryland (EUA). Enviado o pedido de autorização para o uso de foto que mostra Pupu, Larsen não só a concedeu, mas também, gentilmente, enviou outras, que mostravam Wiessner e Pupu conduzindo as tais entrevistas e bebendo refrigerante.
Por que alguém teria essas fotos em seu álbum particular? Resposta: Larsen é filho de Wiessner e foi criado entre os engas na infância. Para isso, há um lugar-comum: mundo pequeno. O leitor está vendo, portanto, fotos que provavelmente nenhum outro jornal ou revista publicaram.
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 298 (novembro de 2012).