A origem da espécie humana é tema de interesse universal, envolvendo crenças, mitos, religiões e também conhecimento acadêmico sofisticado e detalhado. A análise das sociedades humanas levou ainda a modelos de natureza ideológica, que arrebataram corações e mentes humanos, em especial ao longo do último século. O mundo de hoje, porém, mostra claramente o esgotamento dessas visões, e minhas experiências pessoais me deram certeza de que a questão central está na relação entre homens e mulheres, junto com o confronto das gerações que se sucedem.
Este artigo tem como foco a evolução biológica inicial da espécie humana, e apresenta resultados de pesquisas científicas independentes iniciadas quando li, em 1975, o livro A origem do homem e a seleção sexual, do naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882). Nesse segundo livro, menos conhecido que o famoso A origem das espécies por meio da seleção natural, Darwin diz ter se equivocado ao dar excessiva importância à seleção natural. Ressalta evidências de forte seleção sexual nos humanos e em muitos outros animais, dando ênfase à nudez da pele humana, diferente da de outros primatas.
Ele discute na obra os caracteres sexuais secundários e a importância da seleção sexual, tanto na competição entre machos quanto na escolha feita pela fêmea. Menciona as vocalizações humanas, sexualmente diferenciadas, e o papel da voz dos animais nos contextos de sinalização e de disputas sexuais. Darwin coloca a seleção sexual como dominante no estágio inicial de nossa separação dos demais primatas, mas essa proposta não foi aceita em sua época. Resgato essa proposta, mas em sentido mais amplo, de seleção por interações dentro da espécie.
Nossa espécie é a única, entre os primatas, que desenvolveu uma forma de locomoção bípede e que não é peluda, e os motivos que levaram a essas duas características biológicas são controversos. O andar bípede pode ser reconhecido nos fósseis, mas as alterações na pele e nos pelos não deixam registros fósseis. Porém, dermatologistas que estudaram a pele humana, em um contexto evolutivo, concluíram que suas alterações surgiram junto com o bipedalismo. Um estudo detalhado da densidade de pelos em várias espécies de primatas mostrou que a densidade relativa de pelos (quantidade de pelos dividida pela área total do corpo) diminui à medida que aumenta o peso do primata. Nossa espécie, no entanto, não pode ser colocada nessa lei geral, pois ocorreu nos humanos uma miniaturização dos pelos, e apareceram ainda pelos, relacionados ao sexo dos adultos, que não existem nos demais primatas.
A antropologia física analisa fósseis de milhões de anos, e está demonstrado que nossa linha evolutiva começa com primatas do Velho Mundo, sem rabo, e que as espécies atuais próximas à nossa, que chamaremos de ‘símios’, incluem gibão e orangotango (asiáticos) e gorila e chimpanzé (africanos). A espécie humana é geneticamente mais próxima dessas espécies africanas.
Ideias especulativas, popularizadas na segunda metade do século 20, que enfatizavam o papel da caça como atividade dos machos na evolução inicial de nossa espécie, foram abandonadas em decorrência de pesquisas detalhadas feitas nas últimas décadas. Hoje, o consenso científico diz que a evolução biológica inicial, com o aparecimento do bipedalismo, ocorreu em ambientes mistos, na borda de florestas, com alimentação à base de vegetais, milhões de anos antes do aumento do cérebro.
Analisando trocas de calor com o ambiente, também demonstrei que a redução de pelos só poderia ocorrer em quadrúpedes muito ativos (com alta atividade metabólica e, portanto, maior necessidade de expelir calor para o ambiente), se estes vivessem em um ambiente onde ainda houvesse proteção de árvores contra a radiação solar direta. Como os pelos ajudam a proteger da radiação solar, não seriam perdidos em um ambiente muito exposto ao sol direto. Os primatas que vivem nas savanas são bastante peludos, como proteção contra absorção de calor.
Bipedalismo e reprodução
Os primatas não humanos são quadrúpedes, e os grandes símios africanos têm uma forma bastante ineficiente de locomoção terrestre, indicando a existência de restrições ao bipedalismo, que se tornam claras quando se analisa a questão da reprodução e do parto, fortemente correlacionada com a postura. A forma de locomoção bípede exigiu mudanças na pélvis que tiveram efeitos no processo obstétrico de reprodução, tornando o parto humano difícil.
O aumento do cérebro intensificou essas dificuldades, mas a origem do problema é a forma bípede de locomoção, com desvantagens claras no que diz respeito à gravidez, ao parto e à sobrevivência do recém-nascido. Acredito que isso explique por que as demais espécies primatas não adquiriram a forma bípede como locomoção permanente, embora todos os primatas possam andar de forma bípede por curtos períodos de tempo. Isso significa que algum fator específico deve ter permitido a evolução do bipedalismo.
Minha proposta pode ser resumida em poucas palavras: “Os primatas carregam suas crias agarradas aos pelos da mãe. Os humanos, porém, não têm pelos para os filhos se agarrarem. Portanto, a única saída de sobrevivência da espécie foi carregar os filhos nos braços, uma pressão seletiva fortíssima para o andar bípede”.
Lia Queiroz do Amaral
Departamento de Física Aplicada
Instituto de Física
Universidade de São Paulo