Como um fotógrafo consegue expressar o caráter de uma cidade? Guiado por essa pergunta, apresento a obra de Horacio Coppola. Não se trata de um fotógrafo qualquer de Buenos Aires, mas daquele que produziu algumas das imagens mais emblemáticas desta cidade.
É curioso: suas fotografias foram feitas no final dos anos 1920 e meados dos anos 1930, porém continuam funcionando no imaginário portenho como se ele tivesse capturado certa natureza da cidade, como se testemunhassem a existência de uma Buenos Aires essencial. Por certo, os historiadores urbanos sabemos que não existe tal natureza da cidade. E então?
Horacio Coppola nasceu em Buenos Aires em 1906, décimo filho de imigrantes italianos dedicados à carpintaria. Ao fim da década de 1920, ele se integra ativamente à vida cultural portenha, participando da criação do primeiro cineclube da distinta Associação de Amigos da Arte; aproxima-se do núcleo do pintor Alfredo Guttero e começa a fotografar.
Em 1929 faz duas fotos de casinhas populares de Buenos Aires que o escritor Jorge Luis Borges publicará no ano seguinte em seu livro Evaristo Carriego. De volta de uma viagem de aprendizagem a museus e obras de arquitetura europeias, faz, em 1931, uma série de fotografias que publicará na revista Sur, um veículo-chave na renovação intelectual.
Retorna à Europa em seguida e participa, em Berlim, de uma oficina de fotografia de uma Bauhaus crepuscular (a famosa sede em Dessau já havia sido fechada por pressões do regime nazista), onde conhece a fotógrafa Grete Stern, com quem se casa.
Em 1935, os dois regressam a Buenos Aires e, com apoio da Sur, realizam sua primeira exposição com as fotografias tiradas na Europa. Graças à repercussão dessa mostra, a Prefeitura encomendou a Coppola seu empreendimento mais sistemático sobre Buenos Aires: as fotografias para o álbum realizado por ocasião das celebrações do Quarto Centenário da Primeira Fundação da cidade, em 1936, momento culminante de uma transformação urbana vertiginosa iniciada há várias décadas.
Primeiro dado a considerar de sua biografia: um filho de imigrantes, sem fortuna nem linhagem, iniciado na fotografia com seus 20 anos recém-completos, consegue o respaldo de algumas das instituições e figuras mais consagradas da cultura de Buenos Aires.
Segundo: se, por um lado, isso constitui mais uma demonstração da dinâmica de integração dessa cidade, ela não é isenta de contradições, já que este filho de italianos buscará mostrar em suas fotografias que, apesar da modernização incessante, apesar da mistura social e material (a imigração somada ao ecletismo arquitetônico e urbano), a cidade conserva uma personalidade criolla original, que perdura e lhe dá seu caráter.
Assim, Coppola produziu as primeiras imagens da fundação mitológica proposta por Borges como resposta às buscas de identidade de Buenos Aires, assumindo-a como uma dupla síntese: entre modernidade e tradição e entre a cidade e o pampa.
Apenas documentos históricos?
Por isso, a modernização urbana que Coppola documenta em muitas de suas fotografias mais famosas pode ser uma entrada enganosa para entender seu programa estético. Vale a pena deter-se neste aparente paradoxo: não se faz justiça às fotografias de cidade quando as tomamos exclusivamente como documentos históricos.
Sabe-se que há algo implícito na própria fotografia que encoraja essa utilização instrumental, como se fosse uma janela para espiar outro tempo, para repor uma ausência – é o que Roland Barthes chamou de “a obstinação do referente”.
E na fotografia urbana esse aspecto se potencializa pelo próprio caráter referencial da cidade, que também parece estar sempre buscando o reconhecimento, mobilizando a nostalgia (e por isso o memorialismo é consubstancial tanto à fotografia quanto à cidade).
Mas a fotografia documenta em primeiríssimo lugar outra coisa: o olhar do fotógrafo, suas premissas estéticas e ideológicas, o modo original como constrói suas imagens produzindo uma nova realidade.
Adrián Gorelik
Universidade Nacional de Quilmes
Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet)