A escala de trabalho irregular pode-se tornar elemento gerador de constante ansiedade na vida de comissárias de voo. Essa foi a conclusão obtida por Diana Bandeira durante o mestrado na Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. Baseada na concepção de tempo como elemento estruturador das relações sociais estabelecidas pelos indivíduos, a pesquisadora aponta que tais profissionais têm o tempo social completamente invadido pelo do trabalho.
“A vida das comissárias é um exemplo extremo da lógica, crescente em nossa sociedade, em que o trabalho em alguns setores acontece 24 horas por dia”, diz a pesquisadora.
Por quase duas décadas, Bandeira atuou como comissária de voo e presenciou as dificuldades de suas colegas de trabalho para gerenciar compromissos profissionais e sociais. Após se desligar do emprego, retomou os estudos e dedicou-se justamente a compreender como as comissárias conciliam a vida familiar com um ofício cujos horários são muito imprevisíveis, sem dia e horário fixos.
Segundo a pesquisadora, a imprevisibilidade na escala de trabalho faz com que as profissionais organizem os momentos dedicados à família apenas após receberem o esquema de horários de voos definido pela companhia aérea.
“Elas tentam encaixar compromissos pessoais nos intervalos em que não estão voando e por isso aguardam ansiosamente a publicação das escalas”, explica. Assim, não podem participar de atividades que requeiram horários fixos ou estar presentes em eventos familiares e em datas importantes que não coincidam com os dias de folga.
A pesquisadora avaliou sete comissárias a partir de um roteiro de entrevistas que pudessem reunir informações sobre as implicações do trabalho na vida social e familiar. Visando a um resultado mais qualitativo do que quantitativo, buscou obter dados acerca do universo subjetivo das entrevistadas.
“A vida cotidiana é um aspecto que só pode ser apreendido de forma qualitativa”, explica a cientista. Além disso, ela procurou um padrão determinado: mulheres que fossem mães e com núcleo familiar próprio. Porém, as comissárias que apresentavam tais características, em geral, não dispunham de horários vagos para participarem das entrevistas.
Tempo dividido
A pesquisa revela que o tempo escasso, perceptível até na própria dificuldade em estabelecer contato com as comissárias, é uma constante na rotina das profissionais. Segundo Bandeira, essa escassez ganha maior dimensão devido à existência de diversos tempos dentro do período de trabalho e de não-trabalho, em um processo de fragmentação. Assim, ainda que não estejam em voo, as aeromoças podem estar distantes de casa e da família em função da rotina de trabalho. “Há os tempos de trabalho e suas variações; os tempos de não-trabalho (na base e no local de residência) e os de deslocamento”, relata.
O tempo é fracionado entre os horários de voo, os de sobreaviso, os de reserva, os de pernoite e os de deslocamento. Quando estão em sobreaviso ou reserva, as comissárias estão em terra firme, porém continuam na base aérea, à disposição da empresa, e podem ser chamadas a qualquer momento para um novo voo. O pernoite corresponde ao tempo em que passam em outras cidades e o deslocamento ao tempo gasto entre a base e a cidade onde residem.
A fragmentação temporal é gerada pela falta de regularidade na elaboração da escala — que, a cada mês ou quinzena, se apresenta de maneira distinta. Desse modo, apesar de a regulamentação profissional determinar um limite de 85 horas mensais em voo, as comissárias passam um tempo maior afastadas de casa. A distância implica a necessidade de reestruturação do ambiente familiar, como a ajuda de um grupo de pessoas — formado por pais, marido e empregada — que passa a desempenhar as tarefas, em geral, atribuídas à dona da casa.
“Esses intervalos longe da família, quando somados à imprevisibilidade de horários e à ansiedade pela publicação da escala de voos, constitui-se em um fator gerador de sofrimento”, aponta a cientista. Segundo ela, as comissárias ressentem-se da impossibilidade de estarem disponíveis para seus familiares e da criação de uma rotina doméstica, uma vez que têm apenas oito folgas e um final de semana livre por mês. Bandeira ressalta que esses fatores geram fadiga crônica e desgaste mental quando associados às condições físicas de trabalho, que incluem pressurização, mudanças radicais de fuso horário e altitude.
Entretanto, para a pesquisadora, além da imprevisibilidade e da fragmentação, o maior desgaste emocional ainda é causado pelo distanciamento da família. “A qualquer incidente, qualquer emergência com um filho ou outro parente, a comissária não pode interferir pessoalmente na situação, pois se estiver voando, seu retorno está condicionado aos horários de voo e às condições meteorológicas que podem determinar o fechamento do aeroporto, entre outros motivos”, completa.
Júlia Faria
Ciência Hoje/RJ
Texto publicado na CH 267 (janeiro-fevereiro/2010)