Seu nome era Domingos Ferreira (1709-1771). Ofício: construtor de instrumentos musicais. Ele seria apenas mais um luthier esquecido no tempo e no espaço – não fosse uma inesperada descoberta que revelaria informações até então desconhecidas da musicologia histórica no Brasil. Pesquisadores encontraram, nos arquivos do Museu da Inconfidência, em Minas Gerais, um documento com informações minuciosas sobre o trabalho desse artesão. Português residente em Ouro Preto (MG), então Vila Rica, ele é considerado o mais antigo luthier – atuante em terras brasileiras – de quem temos notícia.
O documento foi encontrado há uma década. Mas só agora as informações nele contidas estão sendo elucidadas. A responsável pela descoberta foi a historiadora Maria José Ferro de Souza, pesquisadora residente em Ouro Preto [à época vinculada à Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)]. “Trata-se de um inventário de partilha de bens. Registra os instrumentos que Domingos Ferreira fabricava à época, suas ferramentas, transações comerciais, recibos e detalhes diversos sobre seu ofício”, diz o musicólogo Paulo Castagna, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que se dedica ao estudo desse testamento.
Para Castagna, o achado é sui generis. “Jamais foi encontrado um documento similar a esse, nem no Brasil, nem em Portugal”, surpreende-se o pesquisador. “Nunca tivemos informações tão substanciais sobre uso e construção de violas no século 18.”
Instrumentos coloniais
Domingos Ferreira produzia violas e outros cordofones dedilhados – sugerindo que, naquela época, instrumentos da música dita profana circulavam em proporção bem maior do que a imaginada pelos pesquisadores. A especialidade do luthier era construir violas de mão (instrumentos antecessores da atual viola caipira). Domingos Ferreira também construía descantes (um tipo menor de viola) e machetes (análogos coloniais do que hoje entendemos por cavaquinho). Eram todos instrumentos típicos da música popular de outrora.
Curiosidade musical: quando falamos viola, hoje, logo pensamos na viola de arco, isto é, naquele instrumento usado em orquestras – que se assemelha a um violino, porém ligeiramente maior. Mas, no Brasil colonial, esse instrumento erudito era conhecido como violeta. A propósito, essa é a denominação ainda usada em Portugal. Nos tempos de Domingos Ferreira, viola era o termo correto para designar o instrumento dedilhado semelhante ao que hoje conhecemos como viola caipira.
Esse instrumento surgiu em meio à nobreza espanhola do século 16. “No século 18, chegou a transitar por todas as camadas sociais, mas, a partir do século 19, foi expulso da elite e por isso passou a ser chamado de viola ‘caipira’”, conta Castagna. Outra curiosidade lexical: em português antigo, ‘violeiro’ é o termo que designa o que hoje chamamos de luthier. E quem tocava viola era chamado de ‘tangedor de viola’.
“Domingos Ferreira produziu e vendeu centenas de violas, descantes e machetes durante sua vida”, contabiliza Castagna. “E certamente não era o único luthier da região.” Para o musicólogo da Unesp, portanto, a sonoridade da música popular era viva e onipresente nas ruas mineiras daquele século. Imaginava-se que, naquele período, a música popular era bem menos difundida que a música sacra – manifestação musical da igreja cristã, poder hegemônico à época. “Agora percebemos que isso não corresponde necessariamente à realidade”, pondera Castagna.
“A propósito, a música profana chegou a ser proibida pela Igreja em vários momentos da história do Brasil”, diz a historiadora Maria Teresa Gonçalves Pereira, do Arquivo Geral da Prefeitura de Mariana (MG). “O testamento parece deixar bem claro que, ainda assim, ela era intensamente tocada e ouvida na época de Domingos Ferreira.”
Senhor e escravo
“Tivemos outra surpresa”, conta o musicólogo. O inventário revela uma relação entre senhor e escravo muito diferente daquela usualmente imaginada – a clássica imagem do tilintar das correntes, do negro cativo submisso aos caprichos de seu senhor. Nada disso. Domingos Ferreira, ele próprio, tinha alguns escravos. E um deles se destacava: Antônio Angola. Não só auxiliava seu senhor em serviços artesanais na oficina – como também era designado a percorrer, sozinho, parte do território mineiro e comercializar os instrumentos por conta própria. Homem de confiança.
“Isso ilustra como a ideia de escravidão pode ser bem mais diversa e complexa do que normalmente pensamos”, afirma Castagna. O pesquisador publicou, em parceria com Pereira e Sousa, um artigo intitulado ‘Domingos Ferreira: um violeiro português em Vila Rica’, detalhando esse interessante contexto. O trabalho está disponível gratuitamente em: Archive.org.
Singela armadilha conceitual pode confundir os desavisados. É o termo ‘música popular’. “No contexto do século 18, esse conceito era radicalmente diferente da maneira como o entendemos hoje”, alerta Paulo Castagna. Nos dias atuais, associamos música popular a um fenômeno de massa de natureza comercial. É a massificação e homogeneização das sonoridades protagonizadas por uma indústria – indústria essa, aliás, demonizada nas críticas demolidoras do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969). Em séculos anteriores, entretanto, música popular era simplesmente aquela não exercida sob os auspícios da Igreja, da nobreza ou do Estado – o que não significava que era acessível a camadas, digamos, mais populares. “No século 18, ‘música popular’ era aquela executada em ambientes de convivência social, familiar, mesmo entre amigos”, ensina Castagna. Era um circuito deveras restrito.
Vejamos o caso da música popular brasileira. Ela tinha cerca de 15 diferentes estilos de dança. A mais comum era a arromba – de onde deriva a expressão ‘festa de arromba’, isto é, festa onde se dança o ritmo da arromba. “Não sabemos como é essa coreografia, mas a arromba é muito citada na documentação histórica tanto no Brasil quanto em Portugal.” Além das danças, integravam o universo da música popular brasileira as chamadas modinhas e também os lundus. Muitas dessas manifestações musicais não resistiram ao tempo. Perduraram somente aquelas que, eventualmente, foram transcritas em sistemas de notação musical – partituras – por músicos letrados e representantes da cultura erudita. Da música popular dos tempos pretéritos, portanto, os traços que resistiram aos séculos foram provavelmente releituras da elite intelectual de outrora.
Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 310 (dezembro de 2013).