Em lombo de burro, o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) viajava por Minas Gerais, em 1834, de volta para o Rio de Janeiro. Pretendia encerrar a ambiciosa expedição científica que iniciara um ano antes com o botânico alemão Ludwig Riedel (1790-1861) e quatro empregados. A viagem já os levara a cruzar São Paulo e enveredar pelo sertão, chegando a Goiás, e permitira coletar grande número de plantas do interior do Brasil, mas foi interrompida após sucessivos problemas de saúde de Riedel. No retorno, após a travessia do rio São Francisco, em cinco canoas, a alquebrada expedição chegou à cidade mineira de Curvelo.
Dirigiam-se a Ouro Preto para prosseguir, pela Estrada Real, até a capital do império, mas em uma taberna, já acomodado no couro de boi que lhe servia de leito, Lund escutou, surpreso, um comentário em dinamarquês. O dono da forte voz, já alterada pela aguardente, disse poder falar naquele idioma o que quisesse, porque ninguém entenderia, mas ouviu, espantado, na mesma língua: “Não se fie nisso”.
Naquela terra estranha, vazia de gente, Lund encontrara um compatriota. Peter Claussen (1804-1855) tinha pequena fazenda na região e extraía, de diversas grutas, salitre e fósseis que vendia para museus da Inglaterra e da França. A coincidência mudou de modo radical o rumo da vida de Lund, até então especialista em botânica. A causa dessa revolução em sua vida intelectual estava no contato que mantivera em Paris com o fundador da paleontologia como ciência, o francês Georges Cuvier (1769-1832). A nova especialidade tinha futuro, e parte dele estava em Minas Gerais.
Poucos dias depois, a expedição seguiu para Ouro Preto, onde ficou até que Riedel, recuperado, partiu para o Rio de Janeiro. Lund, porém, alterou seus planos e voltou a Curvelo e à fazenda de Claussen. Na volta, como ocorrera na ida, passou pela pequena vila de Lagoa Santa, então com pouco mais de mil habitantes, onde viria a residir até sua morte, em 1881. Lund já vivera no Brasil entre 1825 e 1829, estudando a fauna e a flora em áreas litorâneas e serranas do Rio de Janeiro, mas após seu segundo desembarque, em janeiro de 1833, nunca mais voltaria à Europa.
A descoberta de Lund
Em abril de 1835, Claussen levou Lund à gruta denominada Lapa Nova de Maquiné, descoberta 10 anos antes, e este ficou deslumbrado. No longo trabalho em que descreveu a gruta, anotou: “Confesso que nunca meus olhos viram nada de mais belo e magnífico nos domínios da natureza e da arte”. Por uma semana, o trabalho do paleontólogo neófito foi intenso, quase frenético. Estudou a gruta, recolheu fósseis e procurou explicações para os fenômenos que, pela primeira vez, observava.
Lund contratara, como secretário e desenhista, o norueguês Peter Andreas Brandt (1792-1862), que havia conhecido na casa de Claussen. Brandt fez desenhos registrando as peças coletadas e algumas cenas do interior da gruta, e elaborou um admirável mapa das passagens e salões desta. Provavelmente, a primeira cartografia de uma gruta realizada no Brasil. Órfão de literatura especializada e ancorado apenas em seus conhecimentos zoológicos, Lund mergulhou na identificação das peças resgatadas: ossos fósseis de corujas, cervos, lebres e morcegos, além de carapaças de caracóis. Mas a grande descoberta ocorreu no espaço da gruta que, por sua beleza, ele denominou ‘Salão das fadas’: o fóssil de um estranho animal.
Nos contatos com Cuvier, em Paris, o dinamarquês conheceu um dos principais trabalhos do sábio, a respeito de uma enorme ossada descoberta em 1787, em Luján, na Argentina, pelo vigário local. A ossada, enviada a Madri, foi montada no Real Gabinete de Ciências Naturais por cientistas espanhóis, que a identificaram como um elefante sul-americano. Desenhos do gigante chegaram às mãos de Cuvier, que, em 1796, refez essa identificação, afirmando ser o esqueleto de uma preguiça terrícola extinta, à qual deu o nome científico Megatherium americanum (que significa ‘grande animal selvagem americano’). A espécie tornou-se o ‘sonho de consumo’ de todo museu europeu.
Lund, sem noção do tamanho da espécie descrita por Cuvier, nem acesso à bibliografia especializada, confundiu o fóssil que achou, da menor das preguiças extintas sul-americanas, com uma das maiores desse grupo, e em 1839 deu a ela o nome Megatherium maquinense, “para lembrar o lugar em que seus restos foram encontrados”, escreveu.
Hoje, o nome correto é Nothrotherium maquinense (ou seja, ‘preguiça selvagem de Maquiné’). Esse animal é um símbolo: é o primeiro achado de Lund, é exclusivamente brasileiro e foi descoberto em um local mágico, centro de visitação turística desde a década de 1960 e ponto final da futura ‘Rota Lund’.
Essa pequena e esguia preguiça pesava cerca de 40 kg, era herbívora e seria capaz de trepar em árvores, fincando nos troncos suas longas, estreitas e afiadas garras (quatro em cada mão, três em cada pé). O andar do animal seria semelhante ao dos atuais tamanduás-bandeira: apoiando-se sobre a lateral do pé, um tanto virado para dentro, e sobre as costas das mãos.
Bebê bem preservado
No apagar das luzes do século 20 e seguindo os passos de Lund, 150 anos depois, encontrei em uma gruta ossos que afloravam em chão pouco compactado. Felizmente. Como a preservação não era boa, decidi, para tornar mais fácil a retirada das peças, cavar em torno e remover os sedimentos de baixo para cima.
Com os dedos, retirava cuidadosamente os sedimentos, e então desprendeu-se em minha mão um pequeno osso, de consistência semelhante à do isopor. Pelo formato, percebi que era a tíbia de um animal muito jovem. Consegui recortar, cuidadosamente, um bloco com o volume equivalente ao de duas caixas de sapato dispostas lado a lado e o virei.
Então, afortunadamente, na face que estava oculta apareceram, entre um fêmur e fragmentos da bacia pélvica de um adulto, porções de um pequeno esqueleto. Lá estava um filhote que nunca nasceu. Do esqueleto da mãe (o encontrado aflorando na superfície), pouco restara. Mas do feto, protegido da erosão por sedimentos e por alguns ossos da mãe, quase nada tinha sido destruído.
Cástor Cartelle Guerra
Museu de Ciências Naturais
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais