Uma curiosidade de alguns fanáticos por esporte é compreender o que faz com que o seu ídolo seja um campeão olímpico, um fenômeno como atleta. Para buscar respostas para essa dúvida e desvendar a complexa maquinaria genética que garante a alguns indivíduos um desempenho destacado em modalidades específicas, os cientistas do esporte vêm investigando as informações armazenadas em seu material genético, ou seja, na molécula de DNA, com resultados promissores.
De modo simplificado, tais estudos seguem esse roteiro: retira-se uma amostra de sangue de um atleta e, do sangue, é extraído e purificado o DNA. Em seguida, este é disposto em um chip – uma pequena placa que facilita a ‘leitura’ dos componentes da molécula – e, após algumas horas, é obtido o rastreamento completo do genoma do indivíduo, ou seja, a sequência dos grupos químicos (adenina, guanina, citosina e timina) que compõem o DNA. Esses grupos, tecnicamente denominados bases nitrogenadas, são identificados pelas iniciais A, G, C e T. Certos trechos dessa sequência formam os genes, nos quais estão armazenadas as informações necessárias para a realização de todos os processos orgânicos.
Essa tecnologia permite identificar a possível existência, no DNA, de cerca de 5 milhões de alterações – ou mutações – na sequência das bases. E algumas dessas mutações genéticas ocorrem em genes que regulam características fisiológicas com potencial para melhorar o desempenho físico. Alguns exemplos dessas características são, entre outras, o grau de crescimento do tecido muscular, o tipo de fibra presente nos músculos, a capacidade de transporte do oxigênio pelo sangue e até a capacidade de captação desse elemento pelos músculos durante uma competição.
Outro modelo de chip – conhecido como chip de RNA – ajuda a identificar a velocidade de expressão de genes, ou seja, a velocidade com que cada um deles exerce sua função no organismo. Essa análise permite identificar genes que se expressam de forma diferenciada em situações específicas, como nos atletas submetidos a árduos programas de treinamento físico.
Essas duas formas de rastreamento genético são tidas pelos cientistas como exploratórias e livres de hipótese. Ou seja, em apenas uma análise é obtida uma leitura completa do genoma, sem necessariamente gerar uma suposição admissível. Afinal, as funções do organismo humano são controladas por quase 30 mil genes – e essas funções são moduladas, para mais ou para menos, por cerca de 10 milhões de mutações genéticas diferentes.
A avançada tecnologia criada para o rastreamento completo do genoma humano está, aos poucos, permitindo ampliar o conhecimento sobre a relação entre a genética e a capacidade de melhorar o desempenho com o treinamento. Quando fazemos exercícios, todos nos adaptamos. No entanto, é natural que o grau das adaptações seja diferente para cada um. Aqueles em que o grau de adaptação ao treinamento físico é muito superior ao da média da população são tidos como os mais treináveis e, ao menos em tese, seriam os que mais se destacariam no esporte de alto rendimento.
Em busca de talentos
Descobrir qual seria o ‘perfil poligênico’ de grandes atletas, quantificar o peso da bagagem genética na expressão final de sucesso e usar essas informações para a tão sonhada ‘detecção de talentos esportivos com base em análises genômicas’ é o que justifica o considerável investimento intelectual e financeiro aplicado a esse campo de estudo. Evidentemente, é preciso ressaltar que o surgimento de um grande atleta não depende apenas da genética, mas também de fatores ambientais como treinamento físico, estado nutricional, estado psicológico e outros.
A maior parte das informações obtidas até agora sobre a relação entre genes e exercício físico veio de estudos mais simples, que antecederam a era dos chips de DNA e RNA. Tais estudos, na grande maioria, investigaram o efeito isolado de apenas um gene, e resultaram na identificação e caracterização de cerca de 500 como potenciais moduladores do desempenho físico humano. Embora esses dados sejam relevantes e tenham contribuído para o início do conhecimento nessa área, esse número de genes parece não ser ainda suficiente para a detecção de indivíduos com potencial para se destacar nos esportes.
Um exemplo, envolvendo a maratona (corrida de 42,1 km), pode explicar por que o conhecimento atual não é suficiente. Na maratona, as artérias dilatam, permitindo que maior volume de sangue atinja a musculatura, para aumentar o fornecimento de oxigênio e nutrientes. A principal responsável pela vasodilatação é a molécula de óxido nítrico (NO), sintetizada naturalmente nos vasos sanguíneos por uma enzima específica, a óxido-nítrico-sintase endotelial (eNOS).
O gene que controla a produção dessa enzima (também conhecido como eNOS) está situado no braço ‘q’ do cromossomo 7, na posição 36 – a localização exata de um gene resultou do Projeto Genoma Humano, que sequenciou nosso DNA (com em torno de 25 mil genes e de 3,2 bilhões de pares de bases) e mapeou nossos 23 pares de cromossomos. Estudo de nosso laboratório analisou o genoma de quase 1,2 mil indivíduos e identificou, em 8% deles, uma mutação (troca de uma citosina por uma timina) na posição 894 da sequência de bases do gene eNOS. Em seguida, verificamos que, nos indivíduos com essa modificação, a estrutura da enzima eNOS também está alterada.
Um dado interessante é que indivíduos com o gene normal e com a mutação não mostraram, em repouso, diferenças na quantidade de fluxo sanguíneo direcionado aos músculos. No entanto, durante o exercício, os portadores da mutação apresentaram menor vasodilatação – ou seja, o fluxo de sangue para os músculos aumentou menos. Isso ocorre porque a enzima mutada não consegue aumentar a produção de óxido nítrico no exercício. A descoberta da mutação e de seus efeitos foi citada por conceituados pesquisadores como uma das mais relevantes contribuições recentes no campo da genética aplicada ao esporte.
Embora essa mutação no gene eNOS esteja hoje entre as mais cotadas para uso na detecção de talentos esportivos com base em análises genômicas, ela não seria, de forma isolada, um bom meio de predizer o desempenho físico. Podem ser citadas algumas razões para isso.
Em primeiro lugar, mesmo que o óxido nítrico seja responsável por cerca de 80% da vasodilatação muscular durante o exercício, outros genes também participam do controle do processo, e deveriam ser considerados em uma análise mais precisa. Além disso, a descoberta foi feita testando-se indivíduos comuns, e não atletas de destaque. É provável que a mutação no gene eNOS também seja encontrada em um percentual ‘x’ de atletas, mas seria preciso testar nestes seu efeito prejudicial para a alta performance em provas que exigem resistência (como a maratona). Finalmente, existe a hipótese – ainda a ser testada – de que, em atletas de elite especialistas em provas de resistência, o organismo poderia produzir alguma outra substância com potencial vasodilatador e capaz de compensar a deficiência de óxido nítrico.
Esse mesmo raciocínio, com entraves semelhantes, é válido para aqueles 500 genes que mostraram, isoladamente, ter influência sobre algum processo orgânico com potencial para beneficiar atletas que precisam de força/potência ou resistência em suas modalidades.
Esta é a situação real da genética aplicada à ciência do esporte, contrariando a conduta desonesta de alguns que conhecem essas limitações, mas, por motivos financeiros e de marketing, já vendem diagnósticos genéticos supostamente capazes de predizer o desempenho físico.
Rodrigo Gonçalves Dias
Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular
Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício
Instituto do Coração
Universidade de São Paulo