O governo brasileiro, há poucos anos, lançou um ambicioso programa de internacionalização no campo da educação, denominado ‘Ciência sem Fronteiras’. A iniciativa ganhou vulto e hoje se apresenta como prioritária no campo da cooperação científica. O programa proporciona a estudantes brasileiros – sobretudo, mas não exclusivamente, de graduação – vivência em instituições internacionais significativas.
Sendo a atividade científica uma prática, não digo sem fronteiras, mas com fronteiras distintas das geopolíticas, a exposição de jovens brasileiros a um universo mais cosmopolita é de valor indisputável. Cabe, no entanto, refletir sobre as fronteiras que acabamos por criar, mesmo em contextos nos quais cremos que estamos a eliminá-las.
Criar fronteiras e distinções é atributo humano. Mesmo em experimentos mais libertários, nos quais limites são implodidos, instituímos novos limites que, por sua vez, estabelecem novas oportunidades, inapelavelmente autolimitadas. Fora do âmbito improvável de sujeitos ungidos por uma onipotência de fundamento divino, somos seres que a todo tempo criamos novos limites.
A atividade científica, em particular, por mais induzida que seja à inovação e à descoberta, é sempre orientada por decisões de política científica que estabelecem tanto oportunidades quanto limites. Não há sociedade que não estabeleça fronteiras internas e restrições em todas as atividades que desenvolve e promove por meio de políticas de governo.
Duas fronteiras, com algum impacto restritivo, estão presentes no programa ‘Ciência sem Fronteiras’. Uma, de caráter geral, diz respeito à exclusão, do conjunto de cursos abertos ao programa, do vasto campo das humanidades. Outra, mais específica, tem a ver com a não inclusão de Portugal como país de destino dos estudantes brasileiros beneficiados pelo programa.
Crença na inovação
Em ambas, trata-se de decisões de natureza política, normais e legítimas em Estados democráticos. No entanto, é sempre importante indagar a respeito das crenças subjacentes a processos de decisão política.
A decisão política de não contemplar o conjunto das humanidades no programa decorre de uma crença nas virtudes intrínsecas da ideia de ‘inovação’. Deixo de lado o aspecto em nada incontroverso do termo, para pôr sob foco a subcrença de que a inovação tem parte necessária com progresso tecnológico e este, por sua vez, exige como condição de possibilidade a prioridade para as chamadas ciências da natureza – tanto orgânicas quanto inorgânicas.
Uma das piores formas de obscurantismo consiste em sustentar que o conhecimento científico a respeito dos processos naturais não faz parte do patrimônio cultural dos humanos, opondo, assim, ciência à cultura. Obscurantismo análogo consiste, entretanto, em supor que o esforço de conhecimento sobre processos históricos, sociais e culturais tem relevância cognitiva menor e incidência diminuta na vida prática dos humanos.
Para o bem ou para o mal, há incontáveis ‘inovações’ conceituais e práticas decorrentes do exercício reflexivo sobre a história e a vida social. A exclusão desse campo constitui fronteira injustificável do ponto de vista do conhecimento e a interposição de um limite ao desenvolvimento da capacidade de interpretação do próprio país.
As universidades portuguesas, apesar da significativa internacionalização, não são consideradas ‘parceiras’ sobretudo por serem lusófonas. A língua portuguesa é rebaixada à categoria de um idioma regional, não compatível com os padrões da linguagem científica internacional. Não se admite que o idioma português – tal como o espanhol – possa ocupar tal dimensão.
É, ademais, uma decisão de política linguística que aplica ao idioma português um efeito de menos-valia. Além disso, implica não reconhecer a excelência e o cosmopolitismo das universidades portuguesas, fortemente associadas ao conjunto do sistema universitário europeu.
Renato Lessa
Fundação Biblioteca Nacional
Instituto de Ciências Sociais
Universidade de Lisboa
Texto originalmente publicado na CH 317 (agosto de 2014). Clique aqui para acessar uma versão parcial da revista.