Fuga quase certa de um buraco negro

 

Ilustração: Gilberto Marchi.

Você acordou em uma cama de hospital. Como chegou até aí? Você se sente bem, um pouco grogue talvez, mas todos os seus pedaços parecem estar ali. O que aconteceu? Você tenta se lembrar. E agora começa a compreender: a última coisa da qual você se recorda é que estava acordando de manhã, em sua própria cama, e olhando pela janela. Tudo o que você viu foi um vazio, escuro. Para piorar o choque de horror, você percebeu que, na noite anterior, sua casa havia sido engolida por um buraco negro, um objeto tão denso que a própria luz é incapaz de escapar dele.

Procurando melhor, você viu que estava mergulhando diretamente em direção a uma singularidade do buraco, o ponto central desse objeto cósmico, no qual as densidades de energia e matéria se tornam infinitas. E onde sucumbem todas as leis conhecidas da física. Você se lembra de dizer a si mesmo: “Uh, oh!” Então, você se recorda de ter ficado enjoado à medida que o ‘puxão’ da força gravitacional do buraco embrulhava seu estômago e…

… De volta à cama no hospital, você diz a si mesmo: “Graças aos céus! Esse negócio de cair em buraco negro foi só um pesadelo.” Certo, mas isso ainda não explica o que você está fazendo no hospital. Nesse momento, uma médica aproxima-se de sua cama. E você diz: “Doutora, por favor, o que aconteceu. Por que estou aqui?” E ela responde: “Uma de nossas ambulâncias espaciais encontrou um buraco negro que estava evaporando e, segundo o juramento de Hipócrates, que exige que ajudemos aqueles que caíram em um buraco negro, coletamos a radiação emitida à medida que o buraco evaporava. Depois de ter cuidadosamente decodificado a informação contida nessa radiação, conseguimos reconstruí-lo na forma em que você se encontrava antes de ser sugado para dentro dessa singularidade. Também fomos capazes de reconstruir seu diário e seu peixinho-dourado. Mas não pudemos recuperar o conteúdo de sua geladeira.”

“O quê?”, você gritou, pulando da cama e batendo a cabeça na luz de cabeceira. “Isso é impossível!” Tentando acalmá-lo e envolvendo-o nas cobertas, a médica diz: “Por favor, não fique tão assustado. Temos bastante comida para você aqui. Precisamos nos assegurar de que suas funções vitais estão normais. Às vezes, informações se perdem no processo de evaporação; por isso, queremos ter certeza de que você está inteiro.” “Estou bem”, você diz. É verdade. Com exceção da parte da cabeça que você acabou de bater, tudo parece estar em ordem. “Só que eu pensava que nada poderia escapar de um buraco negro, nem mesmo a luz.”

“Por quase dois séculos”, a médica respondeu condescendentemente, “as pessoas pensaram que nada pudesse escapar de um buraco negro. A idéia de que um objeto fosse tão denso que nem a luz pudesse fugir dele foi proposta pelo padre inglês John Michell (1724-1793) em 1784. Em 1795, o grande matemático francês marquês Pierre Simon de Laplace (1749-1827) usou as leis da gravitação de Isaac Newton (1642-1725) para calcular quão densa uma estrela dessas deveria ser. No início do século passado, o físico alemão Karl Schwarzschild (1873-1916), que aplicou a teoria da relatividade geral de Albert Einstein (1879-1955) para objetos de grande massa, para identificar o ponto sem volta (chamado horizonte de eventos), além do qual nada jamais poderia escapar da força da gravidade, nem mesmo a luz.“

E continuou a explicação: “Mas, na década de 1970, começaram a surgir as primeiras idéias de que algo poderia escapar de um buraco negro. Essas idéias surgiram do estudo da mecânica quântica (o ramo da física que descreve as coisas em sua menor escala e que nos conta que a matéria do universo é feita de partículas elementares, ou quanta, como elétrons, fótons, quarks e glúons). Em 1974, o físico britânico Stephen Hawking mostrou que, quando você inclui a mecânica quântica, um buraco negro não é inteiramente negro: ao contrário, ele parece irradiar partículas para fora de suas redondezas. O buraco negro evapora.”

Você odeia quando as pessoas querem te dar uma aula. “Certo, certo”, você diz, “todo mundo sabe que os buracos negros emitem radiação. Até eu sei que a radiação que vem deles é chamada radiação Hawking. Mas achei que o próprio Hawking tinha dito que a radiação que vem de um buraco negro é completamente aleatória e não contém informação sobre o que há dentro do buraco.”

“Isso é o que Hawking pensou originalmente”, disse a médica, “e, por longo tempo, ele manteve uma aposta com John Preskill, do Caltec (Instituto de Tecnologia da Califórnia), sobre se a informação poderia escapar ou não de um buraco negro. Hawking defendia que a informação não poderia escapar, enquanto Preskill acreditava que sim. Recentemente, porém, Hawking reconheceu que estava errado e honrou a aposta.”

Você precisa digerir isso tudo. Quer dizer que Hawking agora diz que ele estava errado, não é? Talvez, isso seja verdade: quem sabe, você realmente tenha caído em um buraco negro e conseguido emergir dele. É a primeira vez que você ouve uma coisa dessas acontecer. Mas, se Hawking diz que pode acontecer, talvez seja mesmo possível.

Mas como eles sabiam como rearranjar você a partir da informação aleatória vinda do buraco negro? Sua cabeça começou realmente a latejar.

“Olha, doutora, me desculpe por ser tão cético com relação a isso. Preferiria acreditar que ter caído em um buraco negro fosse apenas um pesadelo. Preferiria pensar que estar aqui, nesta cama de hospital, fosse também um tipo de sonho. Gostaria de poder acordar a qualquer momento. Mas, já que estou aqui, você poderia me explicar como a informação pode escapar de um buraco negro?”

“Você não acha que deveria descansar um pouco?”, pergunta a médica. “Não”, você diz, “Se isso realmente for um sonho, então quero acordar sabendo a resposta para uma das questões mais enigmáticas sobre o universo. Posso ganhar o prêmio Nobel.”

Seth Lloyd
Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT),
Estados Unidos

 

Você leu apenas a introdução do artigo publicado na CH 244.
Clique no ícone a seguir para baixar a versão integral (2,0 MB) Arquivo de formato PDF. Pode ser aberto com o Adobe Acrobat Reader. Baixe gratuitamente de http://www.adobe.com/

Outros conteúdos desta edição

Outros conteúdos nesta categoria

614_256 att-22975
614_256 att-22985
614_256 att-22993
614_256 att-22995
614_256 att-22987
614_256 att-22991
614_256 att-22989
614_256 att-22999
614_256 att-22983
614_256 att-22997
614_256 att-22963
614_256 att-22937
614_256 att-22931
614_256 att-22965
614_256 att-23039