Quando as motosserras ferem a madeira, muitos ecologistas gritam contra o fim da mata virgem. Mas a ‘mata virgem’ (floresta ‘primitiva’) não existe, e as evidências disso vêm de diversos estudos sobre atividades de antigas populações humanas antes do surgimento da agricultura, publicados justamente no momento em que gourmands do mundo inteiro dirigem olhos cobiçosos para produtos da floresta. Um deles, o chef espanhol Ferran Adrià, apontado como um dos melhores do mundo, já disse acreditar que o futuro da gastronomia está na China e na floresta amazônica.
Os dados já existiam, apurados por arqueólogos e antropólogos brasileiros, mas só mais recentemente o conceito de floresta ‘primitiva’ foi substituído por floresta ‘cultural ou manejada’, resultante do manejo humano milenar. Em outubro de 2009, foi lançado um número especial da revista científica Current Anthropology, intitulado ‘Repensando as origens da agricultura’, que descreve o mundo pré-agrícola, anterior à domesticação e ao cultivo de plantas em larga escala, hábitos que – por volta de 10 mil anos antes do presente – impulsionaram a civilização.
Essa nova perspectiva é uma revolução intelectual, pois agora se admite que, antes da agricultura, existia algo que não era apenas caça, coleta e pesca, correspondentes à imagem idílica do paraíso em que era preciso apenas ‘colher’ o que a natureza oferecia.
Sofisticação cultural
Estima-se que os humanos chegaram à Amazônia há mais de 13 mil anos. Como eles viviam? O antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional, no livro Os índios antes do Brasil, já havia mostrado como eram falsas as ideias de que, além do império inca, não existia sofisticação cultural nas terras baixas da Amazônia.
Aldeias cercadas, com até 5 mil pessoas, ligadas a outras por largas estradas; pomares onde se cultivava mandioca, pequi e outras plantas; lagos onde se criavam tartarugas: assim era a sociedade do alto rio Xingu há milênios, antes da existência dos atuais povos indígenas da região.
Sabe-se hoje, porém, que a domesticação das espécies vegetais nas Américas não teve apenas um centro de difusão. Tão cedo quanto no sudeste da Ásia, aqui também o homem já manipulava vegetais: o milho, várias abóboras, araruta, mandioca, inhame, amendoim, batata-doce, feijões. Isso entre 10 mil e 7 mil anos antes do presente, no planalto mexicano, no sudeste do Equador e em vários lugares da América do Sul.
Seleção artificial
Naturalistas renomados, contemporâneos do inglês Charles Darwin (1809-1882), achavam absurdo supor que povos primitivos praticassem a seleção artificial. Darwin, no entanto, concluiu que muitas espécies – como o arroz (na China), o milho (na América) e outras – só chegaram ao conhecimento moderno porque foram modificadas pela seleção artificial. Em geral, acredita-se que muitas populações das Américas Central e do Sul começaram a transformar e manter suas paisagens botânicas com fins alimentares há cerca de oito milênios.
A mandioca provavelmente foi domesticada no território entre Rondônia, Acre e Mato Grosso, há cerca de 5,5 mil anos. Apenas nessa região são encontrados vestígios da forma selvagem da planta. Outros estudos atribuem a difusão do milho pelo Brasil também a partir do Acre, levado pelos tupi-guaranis até o Sudeste e o Sul. Esse movimento deve ter se concluído entre os anos 1000 e 1500.
A produção de alimento, segundo a nova perspectiva arqueológica, não se restringe à capacidade de produzir e estocar excedentes. Ela considera o manejo dos ciclos reprodutivos das plantas em coevolução com os grupos humanos.
Talvez o achado mais importante, na Amazônia, seja a chamada terra preta arqueológica (TPA) ou ‘terra preta de índio’: um solo rico, criado pela ação de grupos humanos ancestrais que viveram na região amazônica. Em processo não intencional, essas populações, ao redor de seus ajuntamentos, concentravam detritos, carcaças de animais e restos vegetais, o que tinha resultado semelhante ao de uma adubação. A Amazônia brasileira está repleta dessas manchas de ‘terra preta’, espalhadas pelo traçado de muitos rios. Sobre esses solos se desenvolveu uma forma peculiar de cultivo.
O arqueólogo Marcos Magalhães, do Museu Goeldi, confirma: “Além das evidências de que a área foi densamente povoada no passado, há evidências botânicas, como castanhais com espécimes alinhados, associados ao cacauí (Theobroma speciosum), nos quais as árvores mais antigas alcançam 500 anos de idade. O platô Aviso (na Floresta Nacional Saracá-Taquera, no Pará) tinha grande quantidade de árvores frutíferas (em especial pequiá, taperebá e abricó-de-macaco), que serviam de alimento para inúmeros animais de caça, principalmente na estação das chuvas, constituindo importante reserva de recursos vegetais e proteína animal, de fácil acesso e controle”.
Carlos Alberto Dória
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas e
Centro de Cultura Culinária Camara Cascudo
Ima Célia Guimarães Vieira
Museu Paraense Emilio Goeldi
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação