As cangas são ambientes resultantes da atuação, ao longo de milhões de anos, de chuvas, enxurradas, calor e ventos em rochas ricas em ferro. Essas ‘couraças’ recobrem – como se fossem ‘ilhas’ – uma matriz geológica em que predominam as chamadas formações ferríferas bandadas, que alternam camadas de óxido de ferro e de outros minerais, depositadas há bilhões de anos. Assim, as cangas e as formações ricas em ferro abaixo delas compõem um geossistema único, por constituir um registro geológico da história da evolução da Terra.
No Brasil, a maioria desses geossistemas ocorre em Minas Gerais, em especial em três regiões: no Quadrilátero Ferrífero (região metropolitana da capital mineira, Belo Horizonte), próximo às cidades de Serro e Conceição do Mato Dentro (centro-leste do estado) e ao longo do vale do rio Peixe Bravo (norte do estado). Importantes áreas de cangas ocorrem ainda em Carajás (PA), Caetité (BA) e Morraria de Urucum (MS).
Cerca de 20% das cavernas catalogadas no Brasil ocorrem nos geossistemas ferruginosos. Recentemente, novo sítio espeleológico ferruginoso, contendo dezenas de cavernas, foi descrito no vale do rio Peixe Bravo. Também foram descobertas nessa região paleotocas, ou seja, estruturas em forma de túneis, atribuídas à escavação por animais extintos, provavelmente tatus gigantes, que viveram no território brasileiro por milhões de anos, até cerca de 10 mil anos atrás. Registros de paleotocas ocorrem ainda em cangas no Quadrilátero Ferrífero e na região de Carajás.
Artefatos de cerâmica e pedra encontrados em sítios arqueológicos associados às cangas indicam que as áreas onde estas ocorrem foram ocupadas por populações humanas entre 1,5 mil (Quadrilátero Ferrífero) e 9 mil anos atrás (Carajás). Também foram descritos, em cangas de Morraria do Urucum, desenhos na couraça ferruginosa realizados por antigos povos indígenas. Esses interessantes registros arqueológicos são conhecidos como petróglifos.
Os afloramentos ferruginosos fornecem serviços ecológicos vitais, não apenas para o ambiente natural, mas também para a população humana. As cangas agem como importantes áreas de recarga hídrica. Devido à enorme quantidade de poros, fendas, fissuras, canais e cavidades existentes nesses solos, eles funcionam como verdadeiras esponjas, transferindo com eficiência a água da chuva para o interior das montanhas.
No Quadrilátero Ferrífero, por exemplo, as cangas e formações ferríferas abaixo delas constituem o principal sistema de aquíferos, que armazenariam – estimativa obtida por estudos geológicos – cerca de 4 bilhões de m3 (volume que pode ser explorado) de água. Esse geossistema contém milhares de nascentes e vários mananciais que abastecem a região metropolitana de Belo Horizonte.
Ameaça à biodiversidade
As cangas são compostas por até 90% de óxidos de ferro e contêm solos muito ácidos, rasos, com reduzidos índices de fertilidade e temperaturas que atingem quase 70°C na superfície. É surpreendente que plantas e animais consigam sobreviver nessas condições extremas.
No entanto, ao contrário do que se imagina, esse tipo de ambiente abriga comunidades de plantas e invertebrados caracterizadas por alta taxa de endemismo (praticamente só existem ali) e raridade. As condições ambientais, somadas ao isolamento geográfico e à antiguidade das cangas, provavelmente contribuíram para a formação dos cenários evolutivos responsáveis pelo relevante número de espécies com distribuição restrita a uma ou poucas localidades.
No Brasil, dezenas de plantas raras e endêmicas de cangas foram recentemente catalogadas. Esse número, porém, possivelmente está subestimado, pois os estudos sobre a flora desse ambiente são escassos. Mesmo nas serras do Quadrilátero Ferrífero, região exaustivamente inventariada desde as expedições dos naturalistas do século 19, é comum a descoberta de espécies novas para a ciência.
Assim como os estudos florísticos, também são escassos os estudos sobre as comunidades animais das cavernas, e frequentes os achados de espécies novas. Os ecossistemas subterrâneos abrigam grande número de espécies de invertebrados, e entre eles há organismos adaptados a viver apenas dentro dessas cavidades (chamados de troglóbios). Esses animais tornaram-se exclusivos do ambiente subterrâneo, caracterizado pela ausência de luz, devido ao isolamento nesse meio por muitas gerações, o que levou à seleção de alterações morfológicas, fisiológicas e comportamentais.
Por sua história evolutiva, os organismos troglóbios são alvo de atenção especial de estudos biológicos e recebem proteção da legislação ambiental. O Decreto 6.640, de 2008, garante a preservação não apenas desses organismos, mas também a proteção total das cavidades onde são encontrados e das áreas mais próximas.
Lagoas temporárias ou perenes na superfície das cangas e no interior das cavernas são ambientes fundamentais para a manutenção de organismos aquáticos, principalmente invertebrados e anfíbios, ainda pouco estudados. Algumas lagoas sobre cangas do Quadrilátero Ferrífero estão localizadas a quase 1,8 mil m de altitude, e as maiores lagoas desse tipo podem ocupar dezenas de hectares, como as situadas na serra dos Carajás.
Flávio Fonseca do Carmo
Felipe Fonseca do Carmo
Iara Christina de Campos
Programa de Pós-graduação em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre
Instituto de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Minas Gerais
Claudia Maria Jacobi
Departamento de Biologia Geral
Instituto de Ciências Biológicas
Universidade Federal de Minas Gerais