Governo interino, danos permanentes. A sequência inscrita na frase anterior muito dá o que pensar. A ideia de interinidade traz consigo a perspectiva de um tempo curto e excepcional, dotado de limites préfixados: possui começo e encerramento precisos. O que não significa dizer que atos produzidos sob estado de interinidade tenham efeitos igualmente limitados no tempo. Nada disso. É parte constitutiva da ação humana a projeção de suas marcas no tempo, gerando cadeias de consequências para além dos motivos iniciais pretendidos.
O tempo, afinal, não para. Não no sentido do ‘andar do tempo’ ou do ritmo continuado dos relógios. Falo no sentido da duração das coisas, da qual o tempo marcado por nossos aparelhos de medição é mero truque de quantificação, exterior ao tempo propriamente dito.
Todo este breve exórdio metafísico está a serviço da seguinte proposição: todos nós, como sujeitos sociais, somos interinos; nossas ações, contudo, são perenes, pois decorrem de cadeias de causalidade que herdamos e alimentam tantas outras que nos sucedem. Isso vale para biografias pessoais tanto quanto para a história de uma sociedade ou de um país.
Pois bem, o governo interino instalado no país a partir de maio de 2016, em meio a decisões claramente marcadas pelo propósito da permanência de seus efeitos, incluiu em seu pacote emergencial e estratégico – com perdão do oximoro – a extinção dos ministérios da Cultura e da Ciência e Tecnologia. Visto assim do alto, mais parecem unidades distintas, com problemas e orçamentos específicos e, portanto, com razões particulares no que diz respeito à dissolução em ministérios maiores.
Não é bem assim, contudo. É bem verdade que os públicos envolvidos com instituições e programas abrigados sob ambos os ministérios são distintos e que é de lamentar a ausência de integração – aí sim – estratégica entre seus propósitos e ações. Profissionais da cultura e da ciência pertencem, por definição, ao mesmo macrodomínio, no campo da divisão simbólica do trabalho: o da invenção e da abertura de horizontes renovados para o pensamento, a sensibilidade e a imaginação. É mesmo de lamentar que não sejamos o mesmo público, a despeito das especificidades de cada campo envolvido.
Mas, não é esse o ponto. A supressão de ambos os ministérios está associada à mesma ordem das (des)razões: fiscalismo seletivo e obscurantismo no plano dos valores. Ambos os ministérios foram atingidos por uma retórica de contenção de despesas, ilação insustentável à luz do peso mínimo que representam como proporção das despesas de governo e da ridícula “economia” obtida com supressão de alguns postos na administração. O que a “economia” parece – ou não – desconsiderar são os prejuízos em longo prazo, os quais sobreviverão à interinidade e demandarão correção imediata, quando voltarmos a ter governos socialmente responsáveis.
Cultura e ciência e tecnologia são áreas que ganharam dimensão ministerial a partir da redemocratização do país, na década de 1980. De lá para cá, houve importante acúmulo institucional, mais visível na pasta da Ciência e Tecnologia (ao qual se acrescentou o termo ‘Inovação’, pleonástico e afetado pela moda constituída em torno dele). Mas, mesmo no campo da cultura, programas vertebradores foram iniciados, com destaque para os Pontos de Cultura e para a percepção crescente da transversalidade da área, aspecto presente em todas os programas e ações de governo.
A coalizão política que sustenta a supressão dos ministérios é assustadoramente conservadora e fundamentalista. Quando o conservadorismo fiscal se associa ao fundamentalismo religioso, a conta será inevitavelmente paga por instituições e programas de governo que lidam com a invenção e a imaginação. Ciência e cultura são domínios habitados por seres cognitivamente irredentos, a despeito de opiniões políticas e orientações morais individuais. Constituem a reserva crítica e independente da sociedade. A extinção, em primeiro plano, atinge os seus praticantes. Mas, em longo prazo, todos estaremos não digo mortos, como sustentava Lord John. M. Keynes (18831946), mas ao menos pesadamente afetados. Vida que segue.
Renato Lessa
Fundação Biblioteca Nacional e
Instituto de Ciências Sociais,
Universidade de Lisboa
renato.lessa@bn.br