Diálogo e mobilização no controle da malária

O que a dengue, a filariose, a febre amarela, a chikungunya e a malária têm em comum? São doenças transmitidas ao homem por mosquitos, que atuam como vetores. A Organização Mundial da Saúde estima que 17% da carga global de doenças infecciosas sejam transmitidos por vetores. Entre essas doenças, está a malária, um dos maiores problemas de saúde pública no Brasil, principalmente na região Norte. Em 2014, foram registrados no país 144.111 casos de malária, sendo que 99,6% deles ocorreram na Amazônia.

A malária, doença infecciosa que pode levar à morte, é transmitida por diferentes espécies de mosquitos do gênero Anopheles. No Brasil, destacam-se cinco espécies, sendo Anopheles darlingi o principal vetor. Os vetores da malária são conhecidos por diferentes nomes populares, como carapanã, muriçoca, sovela, mosquito-prego e bicuda.

A malária que afeta o ser humano é causada por cinco espécies de protozoários do gênero Plasmodium. Entre elas, as mais importantes são: Plasmodium falciparum, causadora do maior número de mortes; e Plasmodium vivax, espécie com maior distribuição no mundo.

O Ministério da Saúde recomenda diversas ações integradas para controlar a malária, como a mobilização de comunidades afetadas e a realização de atividades de educação em saúde. Além de divulgar informações sobre a doença, o governo ressalta a importância de se transmitirem conhecimentos práticos de prevenção e controle dos vetores, por meio de medidas simples de proteção individual e/ou coletiva.

Diante dessas recomendações do Ministério da Saúde, foi desenvolvido um projeto de prevenção da malária na comunidade do Lago do Puruzinho, no município de Humaitá, no Amazonas, que incluiu a criação de um espaço de diálogo sobre a doença e a promoção de ações que pudessem ser realizadas pela própria população.

 

Isolamento e endemismo

O Lago do Puruzinho, situado na área legal da Amazônia brasileira, tem aproximadamente 120 habitantes (sendo a maioria crianças), distribuídos em 23 famílias. Nosso grupo de estudo tem projetos conjuntos com essa população desde 2002. Nesse período, foram abordadas outras doenças parasitárias, principalmente verminoses.


A comunidade do Lago do Puruzinho fica no município de Humaitá, no Amazonas, dentro da área legal da Amazônia brasileira.

Mas a malária é a principal preocupação dessa população em relação à saúde e sua incidência é alta na comunidade (1.000 casos em 10 anos), o que motivou a escolha do Lago do Puruzinho para esse projeto de prevenção da doença, que teve a colaboração da Secretaria Municipal de Saúde de Humaitá (AM) e da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas. A existência de um trabalho prévio no local, bem como o fato de estar em uma área endêmica de malária e representar uma comunidade ribeirinha tradicional da Amazônia, também foram motivos para a realização do projeto no Lago do Puruzinho.

 

Debate e reflexão

Para promover a troca de informações sobre a malária e suas formas de prevenção, foi adotada uma abordagem conhecida como indagação comunitária, que incentiva o questionamento e o debate sobre os problemas que incomodam a população. Nesse contexto, esse trabalho promoveu o diálogo com as famílias separadamente, reuniões com a comunidade e o chamado ciclo de indagação.


Lago do Puruzinho
(foto: Claudio Eduardo de Azevedo e Silva)

O ciclo de indagação, usado em diversos países da América Latina, é uma ferramenta que estimula a curiosidade por meio da observação e consiste em três passos. Primeiro, elabora-se uma pergunta, estimulada por observações, curiosidades, experiências e conhecimentos prévios (marco conceitual). O segundo passo, chamado de ação ou experiência de primeira mão, é dedicado à coleta e análise de informações que permitam responder a pergunta inicial. Por fim, é feita uma reflexão sobre os resultados obtidos, considerando se eles são aplicáveis a um âmbito mais amplo. As reflexões podem levar a um novo ciclo de indagação.

Para o projeto de prevenção da malária, o ciclo de indagação foi aplicado duas vezes, uma no início e outra no final do trabalho, em 2012 e 2013, respectivamente. Todas as famílias do Lago do Puruzinho foram convidadas a participar, mas apenas 48% delas concordaram e enviaram representantes. Na primeira indagação, caracterizou-se o perfil (sexo e idade) de quem contraiu malária na comunidade entre 2003 e 2012, utilizando informações cedidas pela Secretaria Municipal de Saúde de Humaitá. Esses dados permitiram observar qual grupo de pessoas estava mais vulnerável à malária no período. Os participantes dos ciclos de indagação puderam se identificar nesse cenário e reconhecer comportamentos na sua história de vida que facilitaram a transmissão da malária. Isso contribuiu para promover mudanças de atitude tanto dos participantes quanto de seus familiares, principalmente os filhos.

Uma das estratégias usadas para promover a troca de informações
sobre a malária e suas formas de prevenção foi o chamado ciclo de
indagação, formado por três passos: diálogo entre membros da
comunidade para a formulação de uma pergunta, estimulada por
experiências e conhecimentos prévios; coleta e análise de informações
que permitam responder a pergunta inicial; e reflexão sobre os
resultados. (foto: Claudio Eduardo de Azevedo e Silva)

Os dados mostraram que o maior número de casos de malária no Lago do Puruzinho se concentrou em pessoas em idade escolar, principalmente homens entre 10 e 19 anos. O predomínio de registros nessa faixa etária foi atribuído pelo grupo ao fato de crianças e adolescentes ficarem fora de casa no horário de maior atividade do mosquito, ou seja, ao anoitecer. Entre os adultos, a ocorrência majoritária da doença em homens também foi associada à maior exposição ao vetor, desta vez por causa do trabalho (pesca, lavoura e extrativismo).

 

Ações comunitárias

Após a discussão dos resultados, o grupo sugeriu algumas ações para a prevenção da malária no Lago do Puruzinho, entre elas, a conscientização de crianças e jovens. Além disso, os participantes propuseram que o microscopista da Secretaria Municipal de Saúde alocado na comunidade (responsável pela realização dos exames de malária e pelo tratamento da população) fizesse um acompanhamento maior das pessoas que chegam ao Lago do Puruzinho, principalmente as oriundas de localidades com alto índice de malária. Alguns estudos demonstram que os deslocamentos humanos têm importante papel na disseminação e na manutenção da malária na Amazônia. A experiência da própria comunidade também identificou essa possível fonte de entrada.

Paralelamente à realização do primeiro ciclo de indagação, os pesquisadores verificaram que a maioria das casas da comunidade tinha paredes e pisos suspensos (chamados de jirau) incompletos, além de não ter tela nas portas e janelas, o que facilitava a entrada do vetor. Esse cenário é muito comum nas comunidades ribeirinhas da Amazônia e dificulta o controle da malária.

A partir dessa observação, foi proposta a realização de um trabalho comunitário, que consistiu em instalar telas nas janelas e fechar as paredes e os pisos das casas, para diminuir a transmissão da doença dentro dos lares. A intenção era gerar um ambiente domiciliar mais seguro para a permanência das famílias durante o período de maior atividade dos mosquitos.


Processo de vedação de uma casa do Lago do Puruzinho para
evitar a entrada de insetos, incluindo o mosquito transmissor da
malária. (foto: Claudio Eduardo de Azevedo e Silva)

Após reunião com a comunidade, as famílias participantes aceitaram o trabalho comunitário. Foram colocadas telas nas janelas e fixadas ripas de madeira (conhecidas como mata-juntas) entre as tábuas que constituem as paredes das casas. Telas também foram instaladas ao redor do piso suspenso. Essa ação, idealizada pelos membros da comunidade, foi uma adaptação das medidas de proteção à realidade local e regional, já que a construção de casas com jirau é comum na Amazônia.

Segundo os participantes, depois dessas mudanças, a presença de insetos – incluindo mutucas (insetos que se alimentam de sangue), marimbondos e diversos mosquitos – diminuiu dentro das casas. Tal fato demonstra a importância de medidas de proteção em ambientes propícios à transmissão de doenças mediadas por vetores dentro dos lares.

 

Medidas eficazes

No segundo ciclo de indagação, realizado no final do projeto, os casos de malária ocorridos antes e depois da intervenção feita pela população foram comparados e discutidos. A análise usou como base o número de casos da doença registrados quatro anos antes e um ano após a intervenção. Antes do ‘fechamento’ das casas, a ocorrência anual de malária variou entre 9 e 57 casos; no ano posterior às mudanças, não houve registros de malária no Lago do Puruzinho.

Os participantes do ciclo de indagação discutiram os resultados e creditaram a diminuição no número de casos a múltiplos fatores. Entre eles, estão: a participação da população do Lago do Puruzinho no projeto; o acompanhamento das pessoas que estão chegando à comunidade de outras regiões pelo microscopista da Secretaria Municipal de Saúde; o fechamento das casas com mata-juntas e telas; a chegada da energia elétrica (por meio do Programa Luz para todos’, do Ministério de Minas e Energia), já que os mosquitos atacam mais no escuro; e o uso de mosquiteiros impregnados com inseticidas doados pelo programa de combate à malária do governo federal.

Durante o projeto, o ciclo de indagação foi aplicado a uma questão cotidiana e usado no monitoramento contínuo da ocorrência de casos de malária por ano na comunidade. No final do trabalho, o grupo formulou a pergunta: “Qual a diferença no número de casos de malária três anos antes e três anos depois de se fecharem as casas com os telamentos?”. Desde então, o monitoramento continua sendo feito pela própria população do Lago do Puruzinho, o que faz do ciclo de indagação um instrumento de educação em saúde.

O monitoramento dos casos da doença, as reflexões sobre os resultados obtidos e as ações desenvolvidas demonstraram que a comunidade se mobilizou para a resolução de um problema grave local. O aumento da coesão do grupo também foi observado ao longo do trabalho, quando as lideranças da comunidade se mostraram mais atuantes e representativas, tanto dentro do grupo quanto nas relações com o poder público. Dar poder à população é um dos objetivos da indagação comunitária, principalmente quando se trata de grupos negligenciados pela sociedade. Os resultados desse projeto demonstram a importância da mobilização social e da educação no combate à malária.

 

Sugestões para leitura

ARANGO, N.; CHAVES, M.E.; FEINSINGER, P. Princípios e prática do ensino de ecologia no pátio da escola. 1a ed. Curitiba (PR): CRV, 2014. 218p.

COELHO-SOUZA, S.A.; MARBA, P.; MIRANDA, M.R.; AGUM, R.; PITARELLO, B.; VANNIER, M.; PANETTI, C.; FUENTES, E.; AZEVEDO-SILVA, C.E.; MALM, O.; BASTOS, W. Alternativas sustentáveis na falta de saneamento básico para populações ribeirinhas amazônicas: uma abordagem desde a indagação comunitária até a bioconstrução coletiva. Anais do VII GeoSaúde 2015, pp. 1050-1064.

 

Claudio Eduardo de Azevedo e Silva
Instituto de Pesquisa Translacional em Saúde e Ambiente na Região Amazônica

Sergio Augusto Coelho de Souza
Centro de Ciências Naturais e Humanas,
Universidade Federal do ABC

Raimundo Nonato dos Santos
Associação de Moradores da Comunidade do Lago do Puruzinho (AM)

Marcio Rodrigues Miranda
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, campus Lábrea

Wanderley Rodrigues Bastos
Núcleo de Ciências Exatas e da Terra,
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Olaf Malm
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho,
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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