Eventos que reúnem grande quantidade de pessoas trazem em si uma riqueza de acontecimentos que os registros/transmissões audiovisuais tradicionais – como os de emissoras de tevê – dificilmente abarcam. As chamadas ‘Jornadas de junho’ de 2013 podem ser consideradas um evento histórico em que a intensidade e a diversidade dos acontecimentos políticos extrapolaram os enquadramentos da mídia massiva e se tornaram visíveis e relevantes também, ou principalmente, por meio de múltiplos registros audiovisuais. É para essas imagens, produzidas por pessoas comuns e difundidas pelas redes sociais, na internet, que voltamos nossa atenção.
Registradas a partir de diferentes pontos de vista, com equipamentos de qualidade diversa, elas contam pequenas histórias componentes de um todo que as tevês tradicionais muitas vezes procuram homogeneizar. Em geral, carregam forte carga testemunhal e emocional, o que reforça sua capacidade de estabelecer laços, provocar, instigar o debate, surpreender e indignar os espectadores.
Assim, sua qualidade técnica inferior – comparada ao ‘padrão de qualidade’ do telejornalismo, por exemplo – parece ser mais uma característica que certifica e legitima a experiência do produtor do que um elemento que limita sua circulação e compreensão.
Nesse sentido, os intensos registros audiovisuais que circularam durante as manifestações políticas no Brasil seriam “imagens violentas”, segundo o conceito de François Jost, especialista em televisão. Para o pesquisador francês, as ‘imagens violentas’ são produções que carregam a vivência do autor: em vez de dirigidas a um espectador, elas trazem uma experiência de quem as fez. Por sua intensidade, essas imagens provocam um choque perceptivo que sensibiliza e mobiliza os espectadores. A estas se opõem, explica Jost, as “imagens de violência”, que, mesmo exibindo cenas de tiroteios, agressões etc., visam mais informar, de modo distanciado, sobre algo que aconteceu com o outro, e não com o operador da câmera.
Ao mesmo tempo em que são fortemente autorais, as imagens violentas revelam a transformação de um enunciado individual em algo marcadamente coletivo, já que envolvem os espectadores de modo a cooptá-los e torná-los coautores responsáveis pela ampliação e complexificação de sua circulação, como discutem os pesquisadores André Brasil e César Migliorin. Nesse sentido, a dinâmica de difusão pelas redes sociais on-line é um elemento fundamental não apenas para legitimar as imagens, mas para construir seu significado compartilhado.
Se pensarmos a questão em termos de um regime de visibilidade, como propõe o filósofo francês Jacques Rancière, nota-se um deslocamento na determinação de quem pode tomar parte na publicação das imagens de circulação ampla. Isso ocorre por meio do registro de imagens originais de pontos de vista múltiplos, mas também pelas possibilidades de apropriação, alteração (em menor ou maior grau) e republicação de vídeos, que tornam o sujeito comum corresponsável e contribuinte efetivo na circulação do audiovisual.
Essa questão parece especialmente importante se confrontada com a tradição da mídia audiovisual no Brasil, construída a partir de poucos polos de enunciação, em geral com pontos de vista semelhantes. Assim, a entrada em exibição de registros diversos traz à tona olhares que, embora já presentes, não tinham ainda veiculação mais ampla. A coexistência dos pontos de vista mais tradicionais e dessa circulação maior de outros cria uma possibilidade de dissenso, como discute Ângela Marques, da Universidade Federal de Minas Gerais.
Registros contraditórios
É possível entender mais claramente essa lógica com base em alguns dos vídeos que registraram as manifestações de junho de 2013. Ao contrário do material das redes de televisão – muitas vezes registrado atrás das linhas policiais ou por cinegrafistas em helicópteros, distantes dos fatos –, diversos sujeitos, grupos e instituições fizeram circular, na internet, em páginas como o YouTube, registros que contradizem as versões mais frequentes dos eventos veiculadas por jornais, rádios, televisões e seus portais de notícias.
Um exemplo: o Jornal Nacional (TV Globo) afirmou que a manifestação em Belo Horizonte, no dia 22 de junho, era pacífica até que bombas começaram a ser lançadas em direção aos policiais. Um vídeo veiculado no canal do governo de Minas Gerais no YouTube [agora não mais disponível], também gravado atrás das linhas policiais, reforça essa versão.
Embora tenham ponto de vista semelhante, o primeiro segue padrões tradicionais da tevê, com um repórter à frente da câmera e a inserção de entrevista, enquanto o vídeo governamental adota o modelo comum no YouTube: a câmera segue o olhar de quem registra as imagens e ‘narra’ o que acontece de modo mais humanizado e intenso.
Já um vídeo publicado no YouTube pelo usuário ‘BHProtesta’ introduz nova perspectiva: exibe o momento em que um policial joga gás em manifestantes que gritavam, parados em frente à barreira. Em seguida, várias bombas de gás são lançadas contra os manifestantes.
Assista ao vídeo do BHProtesta
A maior diferença técnica entre os vídeos do ‘BHProtesta’ e do governo mineiro é a presença evidente, no segundo, de edição de imagens. A ausência de cortes, o local da gravação e a proximidade das pessoas atingidas pelos gases tornam o primeiro mais envolvente – ou mais ‘violento’.
Além disso, o vídeo do governo mineiro foi obtido a maior distância do ‘epicentro’ do conflito e precisa se ancorar na fala do cinegrafista, que claramente não podia ver os pormenores do início dos confrontos. No outro, a proximidade e o som ambiente dispensam qualquer narração verbal.
Nesse contexto, a formação ou a atuação profissional deixam de ser elementos essenciais para determinar quem tem “competência para ver e qualidade para dizer”, conforme Rancière. E a possibilidade de dissenso é fortalecida pela circulação ampla de registros múltiplos.
A intensidade dos vínculos propiciados pelas imagens de múltiplos emissores se amplifica pela crescente possibilidade de sua transmissão ao vivo. Nos protestos brasileiros, o representante exemplar desse modelo é a chamada ‘Mídia Ninja’ (a sigla significa ‘Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação’).
Sob controle ou imprevisível?
A transmissão ao vivo em emissoras de tevê tradicionais é fruto, cada vez mais, de um minucioso processo de planejamento e roteirização. Ao se abrir para as precariedades e tensões das ruas, a emissão ao vivo se impregna de incertezas, riscos e erros. Assim, enquanto as grandes emissoras de tevê tentam se livrar de tudo que fuja ao seu controle em uma transmissão ao vivo, as emissões das ruas, via internet, parecem radicalizar a ideia de uma experiência imprevisível.
É indiscutível a importância da Mídia Ninja e de experiências correlatas para complexificar a circulação das imagens violentas, nas manifestações. Ao menor sinal de conflitos, abusos etc., suas transmissões mobilizaram e engajaram uma audiência conectada nas redes sociais, que passou a disseminar freneticamente os relatos. Com o avanço das manifestações, novos ‘ninjas’ surgiram, trazendo diferentes leituras e ângulos dos eventos.
Durante a ocupação da prefeitura de Belo Horizonte por movimentos sociais, no fim de julho, por exemplo, três outros perfis no Twitcam (identificados como Maria Objetiva, RealMidiaBH e Muskitovisk), além da Mídia Ninja, transmitiram ao vivo – de dentro e de fora do prédio – por meio de telefones celulares. Enquanto o repórter ninja, dentro do prédio da prefeitura, entrevistava pessoas em um ambiente relativamente tranquilo, os repórteres de Maria Objetiva, RealMidiaBH e Muskitovisk exibiam conflitos que aconteciam do lado de fora do prédio.
No episódio da prefeitura de Belo Horizonte ou em qualquer outro que desperte o interesse das audiências, a presença de diversos ‘observadores’ que transmitem ao vivo seu testemunho propicia uma ruptura pouco comum à mídia tradicional. A transmissão ao vivo por midialivristas corresponde a uma multiplicação de registros que dão a ver perspectivas diferentes – aproximando a possibilidade de transmissão ao vivo da diversidade e dissenso comuns em nossa vida cotidiana.
Carlos d’Andréa
Joana Ziller
Programa de Pós-graduação em Comunicação
Universidade Federal de Minas Gerais
Autores de um capítulo do livro Ruas e redes: dinâmicas dos protestos BR (Autêntica, 2014)
Texto originalmente publicado no sobreCultura 16 (julho de 2014).