A intervenção política dos intelectuais tem sido um fato recorrente na Argentina. Os partidos que contavam com apoio popular, no entanto, como o radicalismo na primeira metade do século 20 e o peronismo desde 1946, nunca foram hospitaleiros com os “homens de ideias”. Por décadas, os intelectuais que queriam ser atores do debate cívico apoiaram de modo geral formações políticas minoritárias, o socialismo ou o comunismo, na ala esquerda do campo político; o nacionalismo, na ala direita. As tentativas de “se encontrar” com o povo (como a que empreenderam na primeira parte dos anos 1970 grupos de universitários marxistas e católicos que se proclamaram peronistas com o propósito de se fundir com as massas e fazer a revolução) não acabaram bem.
O retorno da democracia em 1983 deixou transparecer que algo tinha mudado. O governo de Raúl Alfonsín, que pertencia à ala progressista do partido Radical, incorporou numerosos intelectuais em nossos postos de gestão ou como assessores de seu governo. Em geral, eles não pertenciam ao radicalismo e a maioria provinha da ala esquerda da intelligentsia.
A construção de uma democracia social e as raízes do autoritarismo na cultura argentina se tornaram questões usuais nos ambientes ilustrados progressistas, suas revistas e seus livros. A esquerda intelectual do peronismo, que provinha da experiência dos anos 1970, não se manteve inativa: agrupou-se ligando-se aos setores renovadores do partido peronista para rivalizar com o radicalismo na luta por uma democracia avançada. A revista Unidos foi seu órgão de expressão.
Esse cenário afundou em 1987, quando os motins militares fizeram o governo de Alfonsín retroceder. O dano que sofreu a imagem do presidente refletiu-se na esmagadora derrota eleitoral pela qual seu partido passou nesse mesmo ano. A hiperinflação de 1989 completou a demolição do projeto alfonsinista. O peronismo voltou ao governo com Carlos Menem, que durante 10 anos fez de seu partido o instrumento do “partido do mercado”. Aliado à direita liberal, Menem quase não recrutou intelectuais, mas técnicos e especialistas, escolhidos para executar as reformas que essa direita tinha solicitado durante muito tempo. O colapso que o país conheceu em 2001 e que arrastou o governo da Aliança encerrou a temporada neoliberal.
Grande chacoalhada
O processo atualmente em curso nasceu dessa grande chacoalhada. O termo corrente para designar o ciclo político que começou em 2003 com o governo de Néstor Kirchner é, precisamente, o de ‘kirchnerismo’, que evoca tanto uma coalizão governante quanto um estilo de gestão, um movimento político e a liderança desse movimento.
Néstor Kirchner chegou ao governo quando o país iniciava uma nova e inesperada etapa de crescimento, cuja base era a produção agrária e o amplo mercado que a China e outros países abriram para ela. Permaneciam ainda, entretanto, os enormes estragos sociais produzidos pelas políticas neoliberais e pela crise de 2001. Ambos, Néstor e Cristina Kirchner, que até a morte do primeiro formaram o núcleo de coalizão governante, provinham das fileiras do peronismo de esquerda.
Mesmo não tendo feito oposição ao governo de Carlos Menem, desde sua chegada ao governo os Kirchner fizeram do passado juvenil um símbolo de identidade do kirchnerismo. A renovação da Corte Suprema de Justiça, a política no campo dos direitos humanos e o impulso dado aos julgamentos de militares resultariam no amplo apoio ao novo governo por parte da opinião progressista. Reforçaram esse respaldo os enfrentamentos com o establishment empresarial e as disputas com a hierarquia eclesiástica. O estímulo ao mercado interno reduziu fortemente o desemprego e os salários melhoraram no marco de uma administração que devolveu ao Estado um papel ativo na economia, junto com uma política social reparadora dos danos produzidos nos anos 1990.
Pouco a pouco, o kirchnerismo dividirá esse mesmo universo progressista que conquistou no início. Certamente, atraiu a colaboração de muitos intelectuais de esquerda, alguns dos quais se incorporariam ao elenco de funcionários – Torcuato Di Tella, José Nun, Horacio González. Outros assumiriam a defesa pública da empresa kirchnerista em livros e colunas na imprensa, sem ocupar cargos no Estado, como o escritor José Pablo Feinmann. O jornal Página 12 transformou-se em um órgão quase oficial.
Em 2008, o conflito entre o governo e o conjunto das organizações rurais precipitou a cristalização de um vasto corpo de intelectuais orgânicos do kirchnerismo. Mobilizaram-se e constituíram o movimento ‘Carta Aberta’, que daria respaldo ao governo de Cristina Kirchner, então titular do Executivo. No primeiro de seus documentos, ou ‘cartas’, denunciariam que o governo democrático se via posto em xeque por uma confluência de interesses que reunia as classes dominantes e o poder midiático.
A controvérsia sobre o kirchnerismo no meio intelectual, que já havia se instalado, intensificou-se. Surgiram outros grupos intelectuais, opostos à política em curso, como o Club Político e a Plataforma 2012. Os intelectuais críticos – Beatriz Sarlo é a pena mais notória – poriam o acento no caráter cesarista e autoritário do governo, em sua aversão ao pluralismo, na manipulação clientelista de suas políticas sociais, na corrupção dos funcionários e na falsificação da informação estatística, em seu desprezo pela deliberação democrática, no caráter arcaico de seu nacionalismo.
Ainda que na atualidade se assista ao fim do ciclo Kirchner no governo, pode-se vaticinar que o debate sobre a via capaz de enlaçar a democracia política e o combate contra a desigualdade social, a autonomia nacional e a ampliação das liberdades irá prosseguir. O cesarismo neopopulista é essa via? Cabe empenhar-se em alguma versão local da socialdemocracia?
Carlos Altamirano
Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet)
Universidade Nacional de Quilmes, Argentina
Autor, entre outros livros, de Para un programa de historia intelectual y otros ensayos (Siglo Veintiuno editores) e organizador de Historia de los intelectuales en América Latina (Katz editores)
Texto originalmente publicado no sobreCultura 16 (julho de 2014).