Quem já se deparou com o trabalho do artista plástico australiano Ron Mueck, seja ao vivo ou nas inúmeras fotos que circulam na internet, não fica indiferente. Suas esculturas humanas desconcertam pela aparência real e viva da pele, do cabelo e das feições e também pelo contraste da escala – algumas são tão pequenas quanto uma criança, outras ocupam mais de seis metros de comprimento. Essas figuras enigmáticas, que provocam simpatia e estranheza, chegam pela primeira vez ao Brasil, onde ficarão em exibição, no Museu de Arte Moderna (MAM), no Rio de Janeiro (RJ), até 1º de julho.
Com curadoria de Hervé Chandès e Grazia Quaroni, da Fundação Cartier para a Arte Contemporânea, a mostra conta com nove esculturas e um documentário sobre o processo criativo do artista, que usa fibra de vidro, plástico e acrílico para dar vida a corpos que parecem reais e, ao mesmo tempo, feitos de matéria etérea encontrada em sonhos.
“O trabalho de Mueck não é, em última instância, realista, a começar pelo tamanho que não é real”, afirma Quaroni. “Suas esculturas são muito parecidas com pessoas de verdade, mas são muito mais que isso. O que as faz tão emocionais é o que elas passam sobre a interioridade do ser humano. O corpo está lá para significar algo, mas o que importa é a situação criada pelo artista. A grande habilidade dele não é ser um grande escultor realista, mas encontrar a situação ideal para transmitir uma emoção ao público.”
Nas esculturas do artista que vieram ao Brasil, encontramos cenas variadas. Uma das estátuas, de 2013, de tamanho monumental, mostra um casal de idosos em trajes de banho reclinados sob um guarda-sol. Outra, feita em 2009, com pouco menos de um metro de altura, representa uma mulher nua e descabelada equilibrando seu corpo enquanto segura uma pilha de galhos.
A manipulação do tamanho dos corpos é uma das marcas do trabalho do escultor, que tem uma razão bem simples para adotá-la. “Nunca fiz figuras de tamanho real, porque essa opção nunca me pareceu interessante; nós vemos pessoas em tamanho real todos os dias”, disse Mueck em uma de suas raras entrevistas concedida à revista especializada Sculpture.
Para a curadora da mostra, a brincadeira com os tamanhos é apenas uma das formas que o artista encontrou de tocar o público. “Por mais estranho que pareça, quando ele muda a escala é sempre para dar uma visão do corpo humano que você já conhece”, diz Quaroni. “Todos nós já vimos pessoas pequenas: ao olharmos para o outro lado da rua, vemos figuras pequenas ao longe. Quando éramos crianças, por outro lado, víamos as pessoas maiores. Por isso não sentimos que estamos de frente a um monstro quando estamos diante de uma de suas esculturas gigantes. No fundo, suas esculturas nos oferecem perspectivas muito familiares.”
Ron Mueck começou a criar suas figuras humanas em Londres no final dos anos 1990. O reconhecimento no mundo da arte veio em 1997, quando participou da mostra coletiva Sensações com a escultura que representava o cadáver de seu próprio pai, nu, de língua para fora e com o sexo flácido exposto. A peça mórbida não é a única do trabalho do artista a provocar estranheza e desconforto.
Uma de suas esculturas (Man in a boat, 2002) em exibição no MAM retrata um homem nu, pálido, sozinho em um enorme barco de madeira. Figura que remete à história de Caronte, barqueiro que na mitologia grega atravessava os rios que dividem a vida e o mundo dos mortos carregando almas. A pele porosa e os fios de cabelos cuidadosamente colocados conferem substância e corpo para a atmosfera de mistério que permeia a obra – parecida, mas não igual, à que envolve os de bonecos de cera.
Para o especialista em arte australiana e curador chefe da Christchurch Art Gallery da Nova Zelândia, Justin Paton, que assina um texto no catálogo da exposição, a arte de Mueck causa estranheza porque fala essencialmente sobre a solidão humana.
“Caminhar por uma exposição de Mueck é se descobrir em companhia de uma multidão de solitários”, diz. “Suas figuras transmitem a sensação de que desejam escapar da atenção dos espectadores. Outras, parecem se retrair em um estado interior que nos é inacessível: estados de preocupação, de respiração profunda e concentrada ou de um sonho mortal. Não são somente esculturas solitárias, mas esculturas que falam sobre a solidão, sobre essa lacuna entre como nos sentimos a respeito de nós mesmos e como os outros nos veem.”
Obra pop
A inquietação causada pelas esculturas de Mueck não afasta o público; pelo contrário. O artista é popular e sua obra circula velozmente em apresentações compartilhadas na internet por pessoas sem qualquer ligação com o mundo artístico. Mueck já se tornou o artista australiano a receber mais por uma obra – sua peça Big Baby foi vendida por 1,2 milhão de dólares em 2012. Ele cativa a atenção de multidões. Sua última exposição, em Buenos Aires, no ano passado, mesmo paga, atraiu 170 mil pessoas, número que deve se repetir ou ser superado na temporada no MAM.
“Mueck se tornou muito popular apesar de sua personalidade, pois ele nunca buscou isso, é uma pessoa muito discreta”, comenta Quaroni. “Há algo muito simples no trabalho dele, que é fácil de entender, talvez por ser baseado em figuras. Suas exposições atraem pessoas de dentro e de fora do mundo da arte; isso porque ele tem uma visão muito interior da vida. Ele fala de coisas que todos temos em comum, trabalha com arquétipos.”
O crítico de arte e artista brasileiro Wayner Tristão, professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco, acredita que o sucesso da arte de Mueck se deve antes de tudo ao fascínio pela técnica. “Por se basear em um elemento tão reconhecido por todos como a técnica, a obra dele ganha valor simbólico, todos reconhecem o mérito do artista em produzir algo com tamanha relação mimética com o real”, comenta.
O apelo popular de Mueck pode se explicar pela própria trajetória do artista. Filho de fabricantes de brinquedos alemães, desde pequeno dedicava seu tempo a modelar figuras. Sem qualquer tipo de formação artística formal, iniciou sua carreira como bonequeiro na indústria cinematográfica, da televisão e da publicidade. Seu trabalho mais conhecido nessa fase foram os bonecos fantásticos produzidos para o filme Labirinto (1986), sucesso surrealista protagonizado por David Bowie.
A ligação do artista com o mercado do entretenimento pode ser a causa das duras críticas que enfrenta por alguns setores do mundo artístico, que não veem reflexão em suas obras.
Mas o crítico de arte e curador do Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma), Robert Storr, defende: “Mueck não está fazendo objetos inovadores para o mercado dos bonecos de fantasia em escala, ainda que use muitos truques da profissão”, pontua. “Suas cenas escultóricas formam situações que não têm nem começo nem fim, momentos intermediários incertos, situações que não existem fora de suas existências como objetos solitários. Esse imaginário tende a fazer com que o público mais sofisticado, sempre apaixonado por ideias e formas abstratas, se acovarde.”
Tristão também vê no trabalho de Mueck uma contraposição aos ideais clássicos de arte e uma tendência à popularização, que acredita ser própria da contemporaneidade. “Estamos assistindo à decadência do conceitualismo, movimento em que a materialidade da obra não importava tanto quanto a busca de questionamentos no espectador”, observa. “Hoje, a arte cada vez mais reencontra o público e reabre o debate sobre sua essência, com a diferenciação eterna entre o erudito e o popular.”
O crítico pondera que obras de forte apelo técnico como as de Mueck são parte de um movimento artístico atual, não reflexivo, que transborda as instituições formais, como os museus.
“Quando a arte encontra esse apelo a todo público já não necessita ficar enclausurada dentro do museu”, afirma. “Atualmente, a imagem ganha tanta importância que desloca qualquer outra pretensão artística ou reflexiva da obra. Nesse sentido, já não existe nenhum valor sagrado ou tradicional. A mercantilização da cultura causa um aumento exponencial do público, mas, por outro lado, não acarreta uma criação de pensamento. Os museus se transformam em verdadeiros parques de diversões e as exposições funcionam mais como uma imensa página de Facebook onde os navegantes passam o olho buscando imagens e dados, sem nunca parar para processar tais informações.”
Reflexiva ou não, é inegável que a obra de Mueck desperta emoções no observador. Para Quaroni, isso basta. “O sentimento que se tem em uma sala de exibição do Mueck é muito diferente de olhar para um boneco; o trabalho dele fala da vida contemplativa e não ativa”, esclarece. “Não são meros retratos de pessoas. Há muitos detalhes nas estátuas, mas eles não são suficientes para dizer quem são essas criaturas. Tudo tem um significado, mas Mueck tenta não individualizar as pessoas, elas são gêneros humanos. Nunca vi algo parecido no mundo da arte, que é o meu trabalho de todos os dias.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ