Pintor, arquiteto, escritor e historiador, assim foi Giorgio Vasari (1511-1574), italiano do século 16 considerado o pai da história da arte. Amigo próximo de Michelangelo (1475-1564) e figura fácil entre a aristocracia toscana, Vasari recolheu em primeira mão grande parte do que sabemos hoje sobre a vida e as criações dos artistas renascentistas.
Sua obra-prima, a coletânea de biografias Vidas dos artistas, por muito tempo foi uma espécie de Bíblia para os estudiosos de arte. O livro, publicado em 1550, foi reeditado e expandido em 1568 pelo próprio Vasari. Essa versão mais recente acaba de ser traduzida pela primeira vez para o português em duas obras. Uma, editada pela Martins Fontes, traz a íntegra de Vidas e a outra, Vida de Michelangelo Buonarroti, editada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), traz em um só livro o capítulo de Vidas sobre o criador da Pietá acrescido de notas e comentários do pesquisador Luiz Marques, que por mais de 20 anos estudou a obra de Vasari.
A biografia de artistas não nasce com Vasari; cronistas como Giovanni e Filippo Villani já escreviam sobre a vida de pintores, escultores e desenhistas no século 14. Mas foi ele quem, segundo Marques, traçou os primeiros contornos da história da arte. “Ele criou toda uma teoria em torno das biografias, deu tratamento sistemático a essas histórias que compõem o que se convencionou chamar de Renascimento”, afirma o professor de história da arte na Unicamp. Marques acrescenta que Vasari classificou as biografias de mais de 130 artistas, de Giovanni Cimabue a Michelangelo, de acordo com genealogias e eras que se suplantam seguindo uma linha evolutiva.
Em Vidas, Vasari apresenta uma visão particular sobre os artistas, em especial quando trata do amigo Michelangelo, a quem chama de “ente celeste e divino, para além da condição mortal”. Sua prosa enaltecedora e parcial distancia-se, naturalmente, da crítica de arte atual, mas ainda assim se faz importante. “Vasari foi capaz de cobrir três séculos de história em uma grande parábola”, diz Marques. “Ele organiza o material histórico de uma maneira que só um historiador é capaz de fazer.”
Marques ressalta ainda outras duas qualidades do escritor: a alta capacidade de descrever as obras de arte e a verve narrativa. Apesar de se declarar pintor, Vasari se destaca mais pelo seu trabalho de historiador, tarefa que executou em italiano, língua do povo, e não em latim.
Embora tenha feito obras admiradas ainda hoje, o homem multitalentos não chegou à altura de seus biografados. Uma prova disso é que atualmente um de seus mais famosos afrescos, que cobre uma parede do Palazzo Vecchio, símbolo do poder da família Médici e sede da prefeitura de Florença, está sendo perfurado para a introdução de microcâmeras que buscam por uma pintura escondida de Leonardo da Vinci.
A relação de Vasari com o poder, representado pelos Médici, se mostra em seus escritos. Mesmo que falando sobre a vida de outros artistas, faz autocitações e insiste em mostrar que é próximo da influente família. Marques conta que essa posição de cortesão assumida pelo escritor afeta diretamente sua versão sobre as histórias dos artistas: “Vasari não hesita em sacrificar a veracidade dos fatos para glorificar seus senhores”.
Marques conta que Vasari era mais um gestor que propriamente artista. Administrava grandes ateliês e produzia rapidamente sob encomenda, especialmente para a família Médici, para quem elaborou grande quantidade de imagens que glorificavam a dinastia, iniciada com Cosimo, o Velho, por volta dos anos 1430.
Isso fica claro ao narrar uma passagem da vida de Michelangelo. Em 1519, o escultor havia sido contratado para construir quatro tumbas para os Médici. Mas, entre 1533 e 1534, é chamado pelo Papa Clemente VII para pintar o afresco O Juízo Final na Capela Sistina, em Roma. Ele aceita o convite e deixa inacabadas as esculturas tumulares. Cosimo I, da família Médici, pede que o artista retorne à Florença para terminar o trabalho e é ignorado por Michelangelo, que nunca se submeteu a seu principado.
Vasari não tem como ignorar o acontecido em seu livro, mas se esforça em explicar a situação sob outra ótica e alega que Michelangelo não retornou à Florença porque os ares da cidade faziam mal à sua saúde. “Ele elabora esse espetacular afresco histórico da arte da Itália, mas sem perder de vista a missão de reafirmar a centralidade cultural da Toscana dos Médici”, contextualiza Marques.
Segundo o pesquisador, a falta de comprometimento com os fatos é mais explícita na primeira edição de Vidas. O livro continha inúmeros erros e imprecisões sobre datas e locais que foram corrigidos na versão de 1568. Vasari assume uma nova postura em relação a Michelangelo: “Se, na primeira edição, ele se controla para dizer certas coisas sobre Michelangelo, 18 anos depois, com o amigo já falecido, permite-se um maior distanciamento e uma visão mais crítica”, pontua Marques. “Toma certas liberdades como citar que uma das fontes do Juízo Final de Michelangelo são os afrescos homônimos de Luca Signorelli em Orvieto, algo que o artista provavelmente não gostaria de ver sublinhado.”
Marques ressalta que a obra de Vasari é ainda referência na história da arte como uma das fontes mais seguras e emblemáticas para o estudo do Renascimento. “Claro que sua visão é diferente da aceita hoje, mas, por mais imparciais que sejam, os historiadores sempre constroem uma versão própria.”
Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line