Há cerca de 100 anos, sabe-se que partículas e núcleos extremamente energéticos bombardeiam nosso planeta a todo instante, criando, na atmosfera terrestre, uma cascata de subprodutos atômicos que chegam ao solo. Mas a origem cósmica desses viajantes sempre foi um mistério. Afinal, que mecanismo seria capaz de imprimir tamanha energia a esses fragmentos de matéria?
Artigo recente, publicado por um experimento internacional, apresenta uma possível resposta para esse enigma centenário: a fonte aceleradora seria um corpo cósmico singular que, ocultado por nuvens de gases, habita o centro de nossa galáxia.
A superfície da Terra é constantemente bombardeada por partículas de alta energia. Entre esses viajantes espaciais, estão prótons, elétrons e núcleos atômicos, dos mais leves, como o hidrogênio, aos mais pesados (e raros nesses eventos), como o ferro.
A natureza extraterrestre dessas partículas foi identificada ainda em 1912, e, na década seguinte, elas ganharam o nome ‘raios cósmicos’. Mas, apesar de seu estudo ter permeado muito da física de partículas e astrofísica do século passado – levando, inclusive, a uma série de outras descobertas fundamentais –, a origem desse fenômeno seguiu sendo um dos mistérios mais duradouros da ciência.
Parte da dificuldade no estudo da origem dos raios cósmicos resulta de sua própria natureza. Por serem eletricamente carregadas, essas partículas são fortemente desviadas pelos campos magnéticos turbulentos que permeiam nossa galáxia. Seu caminho através do cosmo é, portanto, errático, o que torna quase impossível localizar diretamente as fontes astrofísicas responsáveis por sua produção.
Apesar dessa incerteza com relação a seus exatos locais de origem, sabemos que as fontes dos raios cósmicos devem ser verdadeiros aceleradores de partículas naturais, mas com energia e eficiência dezenas de vezes superiores aos laboratórios terrestres, a ponto de desafiar uma completa compreensão teórica dos mecanismos envolvidos.
Entende-se, porém, que, na base do processo de aceleração dos raios cósmicos, está o chamado ‘mecanismo de Fermi’, proposto, em 1949, pelo físico italiano Enrico Fermi (1901-1954). Sua principal característica está no fato de ele ser um mecanismo universal, isto é, capaz de atuar nas mais diversas escalas de tamanho e energia das fontes astrofísicas, com potencial, portanto, para explicar todo o impressionante espectro de energia dos raios cósmicos, que se estende dos bilhões de elétrons-volt (109 eV) para além de energias 1 bilhão de vezes mais altas (1018 eV) – e que se aproximam daquelas dos fenômenos macroscópicos.
Simples em sua essência, o mecanismo de Fermi impõe apenas uma condição: as partículas devem ficar confinadas na fonte por tempo suficiente para serem aceleradas até altas energias. No entanto, quanto maior a energia de uma partícula, mais difícil é seu confinamento.
Sabemos, assim, em linhas gerais, que os raios cósmicos de mais baixa energia (de 1015 a 1017 eV) têm origem na Via Láctea, enquanto as partículas mais energéticas (acima de 1018 eV) devem vir de fora, tendo, portanto, origem extragaláctica.
Rastro da origem
Mas, como podemos determinar as fontes exatas desses raios cósmicos, se não temos informação direta de sua origem?
Felizmente, a produção dos raios cósmicos deixa rastros. Conforme se propagam para longe de seus sítios aceleradores, eles interagem com a luz e o gás do meio interestelar nas proximidades dessas fontes, produzindo ‘raios gama’ (radiação eletromagnética muito energética), que, por não terem carga elétrica, viajam em linha reta, sem interagir com os campos magnéticos. Desse modo, servem para rastrear os pontos de origem dos raios cósmicos no céu.
Esses raios gama cósmicos de alta energia são estudados desde a década de 1980 por gigantescos observatórios terrestres chamados de ‘telescópios Cherenkov atmosféricos’, nome que deriva da técnica experimental que esses experimentos usam para detectar essa forma de radiação (ver ‘Raios gama cósmicos’, em CH 320). Até hoje, mais de 100 fontes de raios gama ultraenergéticos foram identificadas, e, com elas, foi elucidada a origem de parte importante dos raios cósmicos.
Hoje, sabemos que os raios cósmicos – em particular, os prótons e núcleos atômicos – com energias até 1014 eV são produzidos na Via Láctea, pelos remanescentes de estrelas massivas que explodiram ao final da vida – fenômeno denominado supernova. Esses ‘restos’ são enormes nuvens de gás quentíssimo (plasma), em um ambiente dotado de campos magnéticos intensos. Nas bordas externas dessa nuvem em expansão, formam-se as condições ideais (ondas de choque) para a aceleração de raios cósmicos pelo processo de Fermi.
A descoberta de que os raios cósmicos com até 1014 eV são produzidos nas supernovas foi consolidada apenas nos últimos cinco anos. E, para isso, foram fundamentais os dados dos telescópios H.E.S.S. (sigla, em inglês, para Sistema Estereoscópico de Alta Energia), experimento de última geração localizado na Namíbia. Sendo o único observatório de raios gama no hemisfério Sul, ele tem acesso direto ao plano galáctico, o qual tem estudado há mais de uma década.
PéVatron
Restava, portanto, a questão em aberto: de onde vêm os raios cósmicos mais energéticos de nossa galáxia, que chegam à Terra com energias acima de 1015 eV?
Recentemente, foi obtida uma impressionante resposta. Em Nature (16/03/16), a colaboração H.E.S.S. publicou resultados de uma análise detalhada de mais de 10 anos de dados que mostram que raios gama com energias superiores a 1015 eV são produzidos no centro galáctico (CG). A fonte foi batizada genericamente ‘PéVatron’ (figura 1) – referência ao fato de ‘PeV’ representar 1015 eV.
O centro galáctico é uma região densa e complexa, formada por inúmeras fontes astrofísicas (remanescentes de supernovas, estrelas massivas, pulsares e nuvens de gás molecular, entre outros), distribuídas em uma região de 33 anos-luz de diâmetro – ou cerca de 20 mil vezes o diâmetro do Sistema Solar. No ‘centro’ (baricentro) dessa região – que é o núcleo da Via Láctea propriamente dito –, ocultado pelas nuvens moleculares, está um objeto singular: Sgr A* (Saggitarius A*), buraco negro supermassivo, com massa equivalente a milhões de massas solares.
Apesar de conhecido há mais de uma década, não se tinha ideia de que Sgr A* poderia ser a fonte de raios cósmicos mais intensa de nossa galáxia. A densidade de raios cósmicos inferidos por meio das observações em raios gama para a região indica que esse buraco negro não só é capaz de produzir prótons de PeV, mas também que tem feito isso continuamente há cerca de pelo menos mil anos.
Ainda devem ser elucidados tanto o mecanismo preciso dessa aceleração – se via processo de Fermi ou não – quanto a região exata da aceleração – se nas proximidades imediatas do buraco negro central ou em algum local mais afastado dele.
A quantidade de raios cósmicos medidos do CG não pode explicar o fluxo total dos raios cósmicos acima de 1015 eV detectados na Terra atualmente. Mas, se no passado, entre 1 e 10 milhões de anos atrás, esse buraco negro esteve mais ativo, como se acredita plausível por outros indícios observacionais, então, ele poderia realmente ser o responsável pela maior parte dos raios cósmicos galácticos observados em nosso planeta.
Esse será um trabalho para os futuros observatórios de raios gama, como o CTA (sigla, em inglês, para Rede de Telescópios Cherenkov), que tem participação do Brasil. E, se confirmado, poderia dar uma resposta definitiva ao debate já centenário sobre a origem dessas enigmáticas partículas cósmicas.
Ulisses Barres de Almeida
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (RJ)