Timothy Stockwell é um dos maiores especialistas da atualidade em políticas públicas para álcool e drogas. Nos últimos 10 anos, ele ocupa o cargo de diretor do Centro para a Pesquisa sobre Dependências da Colúmbia Britânica e é professor catedrático do Departamento de Psicologia da Universidade de Victoria, ambas no Canadá. Antes disso, por 16 anos, dirigiu o Instituto Nacional de Pesquisa sobre Drogas, na Austrália, país onde também teve cargos acadêmicos.
Com formação pela Universidade de Oxford e doutorado pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres, Stockwell tem cerca de 350 trabalhos publicados, entre artigos e livros, além de ganhar vários prêmios em sua área. Nesta entrevista exclusiva à CH, Stockwell desafia uma afirmação aceita como verdade até mesmo pela comunidade de saúde: a de que, em doses moderadas, o álcool é bom para a saúde. Ele fala, entre outros temas, sobre a descriminalização da maconha, o lobby da indústria do álcool e sobre como deveria ser uma política pública de drogas.
As reuniões da comissão de narcóticos das Nações Unidas parecem indicar uma inclinação para a descriminalização das drogas. O senhor acha que esse abrandamento das leis antidrogas será uma tendência no futuro próximo no ocidente? De seu ponto de vista, deveria ser assim? Por quê?
Se, por ‘abrandamento’, você se refere a um movimento no sentido de descriminalizar e legalizar a Cannabis [maconha], eu, então, concordo que essa será a tendência em um futuro próximo em muitos países ocidentais. O Canadá, por exemplo, tem um governo que foi eleito com base na promessa de chegar a esse objetivo. Com algumas reservas, acho que isso, na maioria dos casos, visa ao bem comum, caso seja feito com base na criação de um conjunto apropriado de estruturas regulatórias voltadas para minimizar os danos [à sociedade], restringir o acesso da droga a menores de idade e melhorar a pesquisa sobre a segurança dos usuários, bem como sobre as consequências do uso da droga para a saúde. De forma geral, a partir de uma perspectiva fundamentada nos direitos humanos, eu sugeriria leis antidrogas menos punitivas e que encampassem abordagens baseadas em evidências para reduzir os danos àqueles que não sejam capazes de – ou que não queiram – ficar em abstinência.
Timothy Stockwell: "Acho que é do interesse
público que as drogas sejam reguladas
segundo as evidências dos danos que elas
causam." (foto: UVic Photo Services)
‘Álcool em pequenas doses tem um efeito protetor contra doenças cardíacas’. Por muito tempo e em termos globais, essa afirmação tem sido considerada verdadeira – mesmo pelos profissionais de saúde. O senhor – que publicou artigo recente sobre o tema – desafiaria essa afirmação? Ela poderia ser falsa até para o vinho, bebida cuja fama por fazer bem ao coração é muito disseminada?
Concordo que essa crença é muito disseminada, e há muita pesquisa científica que sustenta essa visão. Se há efeitos protetores, estes parecem ser igualmente aplicáveis a todos os tipos de bebidas alcoólicas. No entanto, há também uma quantidade crescente de razões científicas para duvidar da validade dos estudos que sugerem essa associação. Razões para o ceticismo incluem a) muitos desses estudos não têm o chamado grupocontrole e são essencialmente observacionais, contendo com frequência problemas de planejamento e execução que levam a vieses, como incluir pessoas que pararam de beber ou que bebem ocasionalmente no grupo de ‘abstêmios’, comparando estes com aqueles que consomem álcool; b) dúvidas recentes sobre estudos feitos em laboratório relacionando o consumo moderado de álcool com biomarcadores que indicam a saúde cardíaca; c) evidências de estilo de vida que acabam se confundindo com outros fatores, como é o caso dos chamados ‘bebedores moderados’ que, muitas vezes, são igualmente moderados em relação a outros aspectos de suas vidas e, por isso, são mais saudáveis que os abstêmios; d) novos estudos genéticos mostrando que pessoas com predisposição genética para beber menos têm saúde cardíaca melhor – e não pior – que outros.
Em pesquisa realizada recentemente no Reino Unido, o álcool foi apontado como a droga mais perigosa, acima mesmo da heroína e cocaína, quando o assunto é saúde pública. Supondo que esse cenário é similar ao de outros países, por que as autoridades de saúde são extremamente complacentes com o consumo de álcool?
Provavelmente, por causa da forte aceitação cultural do álcool – a qual é apoiada por uma indústria de propaganda com orçamentos bilionários – e do uso disseminado dessa bebida, nossa droga recreativa favorita. Apenas um pequeno número das admissões em hospitais relacionadas ao consumo de álcool, bem como das mortes causadas por seu consumo, recebe, na verdade, um diagnóstico específico relativo ao álcool, enquanto os muitos milhares de casos de câncer provocados pelo consumo de álcool raramente – se tanto – têm essa causa mencionada nos diagnósticos. Isso provavelmente contribui para a baixa conscientização sobre a relação entre álcoolcâncer e os tantos outros problemas sérios de saúde associados ao uso de álcool.
Em relação ao álcool e seu impacto danoso na sociedade, o senhor acha que o papel da Organização Mundial da Saúde (OMS) tem sido apropriado?
Esta é uma questão difícil. Estou certo de que a OMS é contida politicamente no modo como ela pode agir, embora, sem dúvida, deveria ser possível a ela falar abertamente e sem constrangimento político sobre questões amplas de saúde pública. Estou certo de que, à medida que as evidências aumentarem em relação aos impactos do álcool sobre a saúde pública, a OMS será mais assertiva sobre esse tema. Tenho consciência de que a OMS tem sido extremamente lenta em responder ao problema, bem como extremamente cuidadosa, e que muitos de seus projetos relacionados ao álcool acabam atrasando. Acho que a OMS sofre muita pressão política de governos sobre a questão do álcool.
O senhor diria que nos EUA e no Canadá a indústria do álcool tem influenciado decisões relacionadas às políticas de saúde pública?
Certamente. Tenho observado isso em primeira mão. A realpolitik [política coercitiva] nestes últimos 10 anos, nos quais tenho trabalhado no Canadá, tem sido aquela de que nenhuma política nacional acontece sem a aprovação da indústria do álcool – e isso inclui o desenvolvimento de diretrizes para determinar as doses de baixo risco para a saúde. A indústria foi altamente influente em prevenir que, nos EUA, o Nida [Instituto Nacional de Abuso de Drogas] e o NIAAA [Instituto Nacional de Abuso de Álcool e Alcoolismo] se fundissem – isso daria má reputação para a imagem de seu produto, caso o álcool fosse visto como apenas mais uma droga psicoativa.
O que as evidências científicas nos dizem sobre a relação entre doenças mentais e abuso de álcool e maconha?
Tenho sido convencido pelas evidências de que o uso pesado do álcool exacerba a ansiedade – não no curto prazo, no qual, de fato, ocorre justamente o oposto –, mas, em longo prazo, à medida que a neuroadaptação e a dependência se desenvolvem, tornase maior a tendência em sentir ansiedade e ataques de pânico quando não se está sob a influência do álcool. Há também evidências sugestivas de que o uso pesado do álcool em longo prazo agrava o quadro de depressão. Em relação à maconha, há alguma evidência de que ela cause um leve aumento no risco de esquizofrenia, especialmente entre indivíduos com predisposição. No entanto, as taxas de esquizofrenia parecem ser bastante estáveis, independentemente das taxas de uso de maconha em diferentes países. Não está muito claro se esse risco é grande ou mesmo se ele existe.
A discussão sobre a permissão ou não do uso da maconha não é apenas científica, mas também política. (foto: adaptado de Cannabis Culture / Flickr / CC BY 2.0)
Recentemente, o governo britânico elevou a classificação da maconha, fazendo-a retornar ao patamar de drogas mais perigosas. Algumas semanas atrás e no sentido oposto, a mídia relatou que o FBI [polícia federal dos EUA] está estudando rebaixar a classificação da maconha. Em ambos os casos, foram decisões políticas ou científicas?
Acredito que, no Reino Unido, a decisão do governo foi baseada quase inteiramente nas evidências ligando o uso da maconha à esquizofrenia. É uma decisão difícil, porque, de longe e sobretudo em baixas doses, a maconha é claramente muito mais segura que o álcool e o tabaco. Esse é um bom exemplo de como as evidências científicas não se traduzem automaticamente em ações políticas, mas requerem valores e interpretações subjetivas para explicar como as pessoas decidem lidar com informação.
Atualmente, o Brasil está assistindo a um debate mais aberto sobre a maconha. Alguns especialistas defendem que seria possível reduzir o consumo de álcool na população em até 25% com a adoção do chamado ‘modelo holandês’ de cafés que comercializam maconha. Há alguma evidência científica em relação a isso?
Tenho visto evidências de que o álcool e a maconha competem entre si no mercado como drogas psicoativas. Tenho visto também evidências de que experimentos com a descriminalização da maconha estão associados a reduções no uso de álcool e até à diminuição de acidentes de trânsito relacionados ao álcool. Eu não classificaria esses resultados como fortes ou definitivos. Acho que essas afirmações são levemente exageradas, mas, em tese, por outro lado, são plausíveis.
Uma tendência atual é que as drogas deveriam ser classificadas segundo as evidências reais dos danos que elas causam. Não raramente, esse ponto de vista tem sido interpretado como uma visão liberal das drogas. O senhor acredita que drogas como a maconha deveriam ser liberadas?
Acho que é do interesse público que as drogas sejam reguladas segundo as evidências dos danos que elas causam. Também seria possível usar essas evidências para minimizar os danos. Um modelo de regulação governamental que eu frequentemente recomendo é aquele no qual as drogas estariam disponíveis tanto para recreação quanto para uso médico de modo a promover os tipos [de drogas] e os métodos de uso que causem menos danos. No Canadá, estamos no momento examinando se teremos ou não o mesmo modelo regulatório [para a maconha] que temos para o álcool, ou seja, com um monopólio do governo de cada estado. Eu também acrescentaria a essa lista os substitutos do tabaco, como os cigarros eletrônicos, e, talvez, psicoestimulantes [drogas capazes de estimular a atenção, a vigília e a atividade motora].
Seria possível imaginar um cenário geral sobre o consumo de drogas no mundo para as próximas décadas? Já que o crack é muito barato e altamente viciante, não deveríamos esperar que seu consumo fosse o que mais subiria em termos percentuais?
Acho que isso vai depender de como os governos irão responder. Se psicoestimulantes alternativos de menor risco forem promovidos, as drogas mais perigosas podem ser deixadas de lado.
Finalmente, diz-se que as drogas são o segundo maior comércio internacional no mundo, depois apenas do petróleo. O senhor acha possível vencer a chamada ‘guerra às drogas’?
Não. Sempre haverá demanda por substâncias psicoativas. Elas são relativamente fáceis de produzir, armazenar, transportar e vender. Elas estimulam os centros de recompensa do cérebro humano, e, para quase toda atividade humana, há uma substância psicoativa que pode facilitar o desempenho, a diversão ou o combate à dor. No mundo moderno, precisamos desenvolver meios democráticos e baseados em evidências científicas para regular a disponibilidade de substâncias psicoativas que minimizem danos e maximizem benefícios. Policiamento e/ou uso de força serão parte importante de uma resposta ampla, mas, cada vez mais, precisamos de uma regulação efetiva, bem como tratamento, redução de danos e programas de prevenção.
Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje/ RJ