O sonho de uma língua portuguesa unificada na ortografia foi ganhando contornos de realidade no final do século 20. Como não poderia deixar de ser, esse desejo passou por fases em que a audácia das propostas não condizia com a sobriedade exigida nessas situações. Afinal, o que estava em jogo era nada menos que a uniformização da escrita do nosso principal código cultural.
Uma dessas fases deu-se por volta de 1986. Entre as sugestões de mudança figurava a eliminação do acento nas palavras proparoxítonas. Se para boa parte dos gramáticos e lexicógrafos a proposta soava descabida – tanto que não vingou –, para um poeta como Paulo Leminski (1944-1989) a ideia parecia no mínimo excitante. Dizia ele que por afetar a “substância” da língua, ou pelo menos o registro gráfico da substância sonora da língua, tal reforma poderia ter “consequências imprevistas” no âmbito da poesia. Só por isso já valia a pena:
“E se disse ‘imprevistas’, só posso estar dizendo ‘positivas’, já que a poesia, de certa forma, é nada mais, nada menos, que um ramo rico da Surpresa, movimento da linguagem em direção ao Desconhecido”, escreveu o poeta paranaense, em Ensaios e anseios crípticos.
Tal como Stéphane Mallarmé (1842-1898) e nossos concretistas, Leminski era um poeta adepto da arte surpreendente, aquela que rompe a expectativa do público e desestabiliza suas convicções, provocando tumultos subjetivos que só serão aplacados com a assimilação gradativa dos conteúdos a princípio inesperados. Em outras palavras, era adepto da arte que nos obriga a acelerar o tempo interior, normalmente comprometido com a espera. Trata-se, nos termos de Paul Valéry (1871 1945), da arte que já está onde não estamos ainda.
Nesse sentido, diante das possíveis mudanças da nossa escrita, o artista já vislumbrava a consumação de uma intrigante tendência natural da língua portuguesa: as proparoxítonas acabariam se transformando em paroxítonas. As surpresas e subversões já começariam por aí. A palavra ‘exército’, por exemplo, viraria ‘exercito’. Isso não só acarretaria confusão com a conjugação da primeira pessoa do verbo exercitar, mas sobretudo degradaria o próprio substantivo: por analogia a diminutivos em geral, como ‘chiquitito’, exercito poderia fazer alusão a um “exército bem pequeno”. Nada melhor para “subverter os códigos de registro”.
Assista a um documentário sobre
Paulo Leminski realizado na década de 1980
O que nos chama a atenção nesse interesse de Leminski pela malograda reforma ortográfica dos anos 1980 é a sutil correspondência que o poeta traça entre “surpresa” e “variabilidade da tônica”, como se essas noções fossem sintomas da identidade natural entre significado e significante valorizados pela reforma.
A poesia seria então beneficiada com associações imprevistas provocadas pelo deslocamento constante das sílabas tônicas. A nova condição é assim resumida, no mesmo texto, pelo autor de Catatau: “Nesse aspecto a Reforma vai provocar um colapso no sistema sonoro fundamental do verso e da rima, baseados na vogal da sílaba tônica. É de tônica em tônica, de vogal tônica em vogal tônica, que se tece a fina teia aracnídea da poesia. Esta Reforma introduz um ruído, uma indeterminação, na tônica (alô, alô, Dona Tonica, amor de tônica, fica?)”.
A tônica e o ritmo
O destaque da tônica na sequência linear do significante linguístico constitui um ponto de apoio decisivo para que um poeta estabeleça o ritmo sonoro do seu poema. Essa espécie de ritualização fonética do texto tem como contrapartida a efetivação da ‘espera’ no plano do conteúdo. Quanto mais regular se apresenta um sistema de acentuação, maior o seu rendimento no controle das expectativas geradas pelos versos.
Por outro lado, se tivermos que incorporar a mobilidade imprevisível da tônica, o acento fortuito estará sempre subvertendo qualquer sistema proposto pelo enunciador. Evidente que, para os autores comprometidos com uma poética da espera, essa mobilidade acentual é vista com reserva. Para Leminski, eterno aficionado da poética da surpresa, essa tônica móvel viria a calhar.
Sem saber da existência do poeta brasileiro, o grande semioticista lituano Algirdas Julien Greimas (1917-1992) propôs na mesma época algumas reflexões estéticas que parecem reproduzir o pensamento de Leminski em versão europeia. Em sua obra intitulada Da imperfeição, publicada em 1987 na França, ele também se serviu da noção de ‘tônica’, procedente do plano da expressão (significante), para propor o que chamou de “sintaxe da vida aceitável”, uma ordenação com a qual o sujeito integraria a surpresa como componente essencial do seu plano do conteúdo. O que é ritmo no significante corresponderia então ao que é sintaxe no significado. Escreve Greimas:
“Para evitar que a iteração das esperas degenere em monotonia, é concebível um arriscado deslocamento da acentuação: uma síncope tensiva, realizando antecipadamente o tempo forte e uma delicadeza em obséquio da espera do outro; ou ainda um sostenuto prolongando a espera, acompanhado de inquietude, porém, revigorando o tempo forte ainda esperado. A turbulência assim criada revaloriza então o ritmo esgotado”.
Em outras palavras, a própria tônica se atoniza ao aparecer sempre no mesmo ponto da cadeia fônica, assim como a surpresa vira espera quando constantemente programada para criar novidades em nosso cotidiano. As artes de vanguarda do século 20, pelo menos as que não escondiam certa compulsão pelo pioneirismo em seu campo de atuação, talvez tenham experimentado ao longo do tempo uma atonização da surpresa que pretendiam causar.
Isso decorreu, segundo Greimas, da sua “ambição totalizante”, da ânsia de abarcar todas as esferas da vida do sujeito. Se pudéssemos conviver com um inesperado menos ambicioso, inscrito em fragmentos do espaço e circunscrito a períodos efêmeros, talvez conseguíssemos, de acordo com o semioticista, chegar pouco a pouco ao essencial da beleza estética, a partir apenas da valorização dos detalhes presentes no cotidiano.
A tonicidade foi aos poucos ganhando estatuto de categoria geral para a análise não apenas dos acentos tônicos dos versos, mas sobretudo do sentido gerado nos textos e em nossas práticas do dia a dia. Contribui atualmente para que a semiótica possa ‘mensurar’ de algum modo o grau de impacto emocional das experiências humanas e sua influência na seleção ou na mistura dos conteúdos abordados pelo sujeito.
A tônica na canção
A canção brasileira de hoje tem alterado a tônica de percepção dos conteúdos universais. O amor, por exemplo, que sempre foi tratado de modo narrativo como um sentimento associado aos estados de disjunção e conjunção, ou ainda, de desencontro e encontro, pode aparecer nas letras atuais como um processo engenhoso de descontinuidade e continuidade.
Diz assim a canção ‘Que me continua’, de Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra, do CD A curva da cintura, de 2011: “Se ando cheio / Me dilua / Se estou no meio / Conclua / Se perco o freio / Me obstrua / Se me arruinei / Reconstrua”. A melodia é invariável assim como são estáveis os pontos de rima. Tudo vira pano de fundo (o esperado) para que achemos a tônica num outro lugar, na sequência de compensações implicativas (se faço isso, compense dessa outra maneira), como se a continuidade das ações do ‘eu’ nas ações do ‘você’ substituísse a simples união.
Ouça ‘Que me continua’,
de Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra
Já Chico Buarque, em seu disco Chico, lançado no ano passado, repleto de novas associações de melodia e letra, consegue atonizar uma pequena passagem da letra de ‘Tipo um baião’, para que a tônica se transfira ao componente musical. Faz desse trecho um refrão em que as palavras apenas refletem a confusão mental do enunciador (“E agora, eu / Não sei agora / Por quê, não sei / Por que somente você / Não sei por que / Somente agora você vem”), enquanto sua voz se engaja numa ‘levada’ musical totalmente imprevista diante da regularidade do acompanhamento pausado (não ritmado) que vigorava até então. Como se precisasse de um sambinha ligeiro só para dizer os versos citados.
Esse deslocamento do ponto de ênfase transporta o ouvinte para o plano da expressão onde o inesperado rouba a cena, já que o assunto no plano do conteúdo quase não evolui.
Ouça ‘Tipo um baião’, de Chico Buarque
Esses modos de tratar o amor, para ficarmos em dois exemplos, eram inconcebíveis nas canções criadas até os anos 1970. Aos poucos, nessas últimas décadas, os cancionistas vêm deslocando o ponto tônico de suas canções e sugerindo aos ouvintes outras formas de apreensão, como se dissessem, paralelamente, “vocês que me continuam”.
E o mesmo Chico chegou a sugerir há alguns anos que o formato da canção talvez estivesse se esgotando. Mas era só sugestão.
Luiz Tatit
Departamento de Linguística
Universidade de São Paulo