A educação em direitos humanos está ausente das escolas públicas e privadas. A causa pode ser buscada na falta – ou no desinteresse – da problematização dos temas sociais relevantes que afetam a realidade local, nacional e global, e que podem ser traduzidos pela lógica da exclusão, carência ou violação de direitos.
Em tempos de mercantilização da educação, em que as escolas e os educadores se esmeram no dever – quase hercúleo – de ter que ministrar o conteúdo programático exigido para que os alunos passem no vestibular, no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou, simplesmente, para que eles avancem nas séries, a educação em direitos humanos propõe uma mudança radical nos objetivos da prática pedagógica: sinalizar que o compromisso maior dos educadores e estudantes é o de realizarem uma educação para a vida e de que a escola deve ser utilizada como espaço estratégico para a discussão sobre os direitos humanos de maneira específica ou transversal aos demais conteúdos.
Ideal humanitário
Mas o que é a educação em direitos humanos? Para entendê-la, é importante saber de algo que aconteceu no ano de 1948, pouco tempo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Naquele ano, diversos países do mundo se reuniram para produzir e ratificar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a primeira manifestação histórica de âmbito universal a reconhecer o direito de todas as pessoas à proteção e à promoção da liberdade, igualdade e dignidade. Esses valores foram cristalizados ao longo de 30 artigos que corporificam essa tríade em diversos aspectos da vida social, desde a liberdade de locomoção até as garantias no trabalho e na educação, entre outros.
Sem dúvida, os direitos humanos tornaram-se, a partir desse momento, a cartilha que sintetiza o ideal de humanidade que gostaríamos de ser. Nesse período, que vai de 1948 até o presente, muitos outros documentos jurídicos foram elaborados para a salvaguarda dos direitos humanos. Mas a DUDH entrou para a história não somente porque representou a primeira garantia jurídica para instituição da cidadania planetária, como também pelo fato de a difusão e valorização dos direitos humanos estarem intrinsecamente relacionadas ao uso da educação como espaço estratégico para o conhecimento desses direitos e o reconhecimento das possibilidades de seu manejo para a melhoria das condições de vida e o enfretamento das violências sociais.
E qual é o desafio dessa proposição para a escola? Seria, primeiramente, o de entender a educação como um direito social, cujo processo de efetivação não pode ser pautado apenas em sua universalização quantitativa, mas, sobretudo, pelo aspecto qualitativo: uma educação de qualidade que utilize os direitos humanos como elemento orientador, referenciado pelas diretrizes estabelecidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Nesse contexto, a temática dos direitos humanos assume plena capacidade de ser mesclada com qualquer disciplina tradicional escolar e de incentivar o trabalho interdisciplinar.
Em uma aula de história, o professor poderia introduzir o tema dos direitos humanos citando vários exemplos históricos de desrespeito à vida, segregação ou discriminação, como o Holocausto, o Apartheid, a situação atual dos imigrantes na Europa, as vítimas da fome ou da Aids. Já, em biologia, podem ser mencionados riscos relacionados à manipulação genética, questões éticas – como o comércio de órgãos e a clonagem humana –, o direito à saúde e à livre disposição do corpo.
Nas feiras de ciência e cultura, é possível trabalhar a temática do meio ambiente, destacando o direito à qualidade de vida integral e a um entorno saudável, fomentando a discussão interdisciplinar sobre as possibilidades de enfrentamento ao aquecimento global e sobre como adotar práticas de produção e consumo sustentáveis.
Transformação social
A educação em direitos humanos na escola objetiva resgatar a função social dessa instituição para promover reflexões que aglutinem os participantes (estudantes, educadores, funcionários, famílias, comunidade local etc.) em torno de causas e temas propícios ao desenvolvimento de ações individuais e coletivas para a transformação social.
Trata-se de entender, como apontam os cientistas sociais Regina Novaes e Daniel Cara, o funcionamento dos direitos humanos como “chave de leitura” para a compreensão de eventos e processos históricos, e como “instrumento de ação” para combater preconceitos, discriminações e desigualdades sociais. Para tanto, surge o dever da escola de estar articulada com os sujeitos locais e de aprender o contexto comunitário no qual se insere, para que possa apreender as situações sociais em que a interlocução com os direitos humanos traria efeitos satisfatórios.
Por isso, a educação em direitos humanos cumpre a função primordial de educar a educação, de fazê-la plasmar o ideal da qualidade como direito-dever de todos os participantes. Nesse aspecto, outro passo fundamental é a valorização da fala e da participação das crianças e dos adolescentes enquanto estudantes.
Como agentes privilegiados de suas realidades, os estudantes não podem ser menosprezados por estereótipos que lhes impõem: a imagem de incapacidade, ingenuidade ou agressividade ‘naturais’. Ao contrário, é preciso reconhecê-los como cidadãos diferenciados dos adultos, não por terem racionalidade menor ou menos amadurecida, mas sim por terem outra racionalidade, outro modo de pensar e experienciar o mundo. Isso precisa ser resgatado e potencializado para garantir o respeito a suas autonomias e fomentar a participação social.
Por que não possibilitar que grupos de estudantes – normalmente inseridos em grêmios estudantis – atuem na gestão escolar, decidam democraticamente, com igual peso de voto e de voz, nos espaços de decisão da escola e da comunidade?
E por que tudo isso? É porque ‘educar a educação’ ou tratar a educação como direitos humanos leva ao segundo passo, o de reconhecer a educação para a democratização dos direitos humanos como elemento fundamental na formação ética, social e profissional dos indivíduos; de articulação do desenvolvimento da personalidade humana, usando meios e recursos que potencializem as habilidades pessoais e garantam vida digna a cada pessoa.
Ao deslocar o enfoque central da educação do mercado para a vida, ao propor o engajamento da escola com sua realidade local e ao fomentar práticas pedagógicas que melhorem a educação e o desenvolvimento humano, a educação em direitos humanos na escola cumpre seu papel de democratizar as relações sociais e possibilitar a transformação de utopias – muitas vezes entendidas como sonhos ilusórios – em ideais a serem perseguidos e alcançados.
Assis da Costa Oliveira
Faculdade de Etnodiversidade,
Universidade Federal do Pará