Em 28 de julho de 1915, Henry James (1843-1916) abdicou da cidadania norte-americana para se tornar súdito do rei George V da Inglaterra. Pouco antes, em 15 de julho, o New York Times já anunciara, com preocupação, a intenção de James de abrir mão de sua nacionalidade de origem em favor da britânica. Segundo o jornal, embora as muitas décadas de residência na Europa e seu espírito cosmopolita tivessem causado a quase completa anglicização do romancista, parecia inacreditável que a antiguidade e importância de sua família nos Estados Unidos e o orgulho que os norte-americanos sentiam de seu sucesso literário não oferecessem um contrapeso forte e suficiente para impedir que levasse a cabo atitude tão radical.
A decisão foi, entretanto, consumada e o motivo imediato que levou o autor de A volta do parafuso a abrir mão de seu vínculo legal com o país onde nasceu foi sua decepção com o fato de os Estados Unidos não haverem ainda entrado na guerra contra a Alemanha.
A eclosão da Grande Guerra (1914-1918) encheu James de terror e espanto: parecia-lhe que a civilização retrocedia radicalmente e, portanto, orgulhava-se do esforço dos soldados ingleses, mortos e feridos nas trincheiras, na tentativa de impedir que a barbárie se instalasse no Ocidente. Quando os Estados Unidos enfim entraram na guerra, em 1917, James já havia falecido – ele viveu apenas sete meses após deixar de ser ‘oficialmente’ norte-americano.
A transferência da lealdade nacional de Henry James irritou e dividiu os norte-americanos. A alguns, como os editores do New York Times, ela parecia injustificável. A outros, porém, significava apenas a oficializacão de um longo processo de alienação do escritor em relação a seu país de origem. Desde muito cedo, Henry James podia ser descrito como um norte-americano viajando pela Europa.
Ainda criança, ele e seus irmãos deixaram Nova York, levados para a Europa por seu pai, o filósofo e teólogo Henry James Sr. (1811-1882), que pretendia lhes proporcionar uma educação cosmopolita. Durante a infância, viveu na Inglaterra, na França, na Suíça e na Itália e, embora tenha passado a parte final da adolescência e o começo da idade adulta nos Estados Unidos, voltou a viajar pela Europa aos 26 anos. Aos 33, estabeleceu-se definitivamente na Inglaterra. A despeito de visitas ocasionais, James jamais voltaria a viver em seu país natal.
Uma de suas últimas visitas, em 1904, deu origem a um conjunto de relatos de viagem, intitulados The American scene (A cena americana, não traduzido), publicados três anos mais tarde. Depois de mais de 20 anos afastado dos Estados Unidos, James retornou à pátria de origem, apesar de se sentir desencorajado por seu irmão, o filósofo William James (1842-1910), e da descoberta de que a ‘fábula’ de seu desgosto em relação à América difundia-se entre seus familiares, amigos e conhecidos. Contradizendo tal fábula, em carta a uma amiga, ele afirma que “a ideia de ver novamente a vida americana, de provar da atmosfera americana, essa é uma visão, uma possibilidade, uma impossibilidade, positivamente romântica”.
A visão romântica se transforma, contudo, em realidade e o escritor reata os laços com seu torrão natal a ponto de declarar que “a suprema relação de alguém é a relação com seu próprio país”. Como conciliar essa afirmação com a substituição de seu vínculo nacional, seis anos depois?
Para responder a essa pergunta, devemos, antes de tudo, investigar o que significava, para James, ser ‘europeizado’, ‘anglicizado’, ‘cosmopolita’, na época que precede o drama da Primeira Guerra Mundial. Uma análise cuidadosa da temática que norteia boa parte de sua obra ficcional e da tradição literário-filosófica a que ela se vincula é fundamental nesse sentido.
O tema internacional
A ficção de Henry James é, em grande parte, marcada por aquilo a que seus comentadores costumam chamar de “tema internacional”. Com isso, fazem referência ao fato de que um grande número de suas narrativas desenvolve-se a partir da mesma situação: norte-americanos que viajam pela Europa e sofrem uma profunda transformação ao entrar em contato com as tradições milenares, costumes e modos de sociabilidade do Velho Mundo.
Os resultados desse processo de ‘europeização’ revelam- se os mais diversos, mas é o processo em si que importa nas tramas de James, pois ele promove tanto o amadurecimento moral quanto o desenvolvimento da sensibilidade estética nesses personagens. Esse é o caso, por exemplo, de Isabel Archer, de O retrato de uma senhora (1881); de Lambert Strether, de Os embaixadores (1903); e de Maggie Verver, de A taça de ouro (1904).
A característica mais marcante dos norte-americanos recém-chegados à Europa é sua ‘inocência’, isto é, o desconhecimento do lado perverso, mesquinho e vicioso das relações sociais. Assim, se a América e os norte-americanos simbolizam a inocência individual, a Europa e os europeus simbolizam a corrupção do indivíduo pela sociedade. Mas, para James, a ‘corrupção’ do indivíduo pelas relações sociais é uma etapa importante – na verdade, imprescindível – em seu processo de amadurecimento. É apenas por meio da perda de sua inocência original que esses homens e mulheres se fortalecem eticamente e se refinam esteticamente.
Luiza Larangeira da Silva Mello
Instituto de História
Universidade Federal do Rio de Janeiro