É possível que o leitor já tenha cogitado em ser sommelier de vinhos ou outras bebidas. Mas já pensou em emprestar a sensibilidade de suas papilas gustativas para avaliar água contaminada ou identificar infecções em amostras de sangue? Provavelmente não – mas e se a língua em questão for um aparato elétrico supersensível? Essa é a base de uma língua eletrônica em desenvolvimento no Brasil, que poderá ser utilizada em áreas que vão da gastronomia à medicina e à preservação ambiental.
Composta por um conjunto de eletrodos envoltos em filmes nanoestruturados (até 100 vezes mais finos que um fio de cabelo), a língua eletrônica faz jus à alcunha. “Assim como nosso órgão, ela trabalha com o conceito de seletividade global”, afirma o físico Osvaldo Novais de Oliveira, do Departamento de Física e Ciência dos Materiais da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos. “O dispositivo não identifica detalhes da composição do líquido, mas o conjunto de sinais captados pelas ‘papilas’ – os sistemas eletrodo-filme – gera uma ‘impressão digital’ única dele.”
O funcionamento é simples: os pesquisadores aplicam um campo elétrico no eletrodo recoberto pelo filme, imerso no líquido, e analisam a impedância do meio – a resistência que o líquido impõe à passagem da corrente. “Cada líquido impõe certa resistência, muito pequena, que conseguimos registrar”, explica o físico Antonio Riul Jr., do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Qualquer alteração mínima no meio altera a resposta elétrica, daí a grande sensibilidade do equipamento.”
As películas, que servem para ampliar esses sinais, podem conter polímeros condutores, moléculas orgânicas, nanopartículas metálicas, entre outros elementos, de forma a gerar respostas diferentes do líquido. “Seria possível usar apenas eletrodos para identificar as amostras, mas os filmes ultrafinos aumentam a sensibilidade na medição, o que é benéfico”, avalia Riul.
A análise dos dados é sempre comparativa – é possível observar, por exemplo, a diferença de sinal da água limpa e de água com algum contaminante.“O sensor sozinho, não é capaz de analisar isoladamente os materiais ou discernir o que mudou no líquido”, destaca o físico. Para isso, além de uma tabela comparativa de respostas elétricas, é necessário um processamento computacional sofisticado. “Imagine diversas amostras de vinho, por exemplo. A quantidade de dados produzidos já é enorme, as amostras são muito próximas e ainda têm certa variabilidade inerente ao produto”, aponta Oliveira, especialista na área. “É impossível distingui-las sem processamento.”
Aplicações variadas
Os degustadores não devem ter medo de que o equipamento tome seu lugar: o sistema também não é capaz de fazer julgamentos de gosto, ou seja, dizer se algo é bom ou ruim, a priori – precisa ser calibrado a partir da experiência humana. “Quem nunca bebeu vinho não sabe diferenciar cada tipo, precisa ser treinado para isso”, explica o engenheiro de materiais Daniel Souza Corrêa, da unidade Instrumentação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em São Carlos. Riul completa: “É preciso usar métodos de inteligência artificial para ensinar ao equipamento o que é bom. A partir daí, é possível pensar em muitas aplicações, como a gastronomia ou mesmo o aprimoramento de medicamentos de gosto desagradável ao paladar humano.”
As possibilidades são muitas: a língua poderá até analisar amostras sólidas – bastando liquefazer pequena parte do material. “Em uma parceria entre a USP e a Embrapa, já foi testado, por exemplo, seu uso como método complementar de avaliação de sementes de soja, para selecionar aquelas com gosto mais agradável para processos de aprimoramento genético”, conta Corrêa. O sensor permitirá ainda testes rápidos para evitar a ingestão de produtos perigosos por pacientes com alguma intolerância alimentar mais aguda.
A clínica médica também pode se beneficiar: a língua já se mostrou capaz de diferenciar, com precisão, infecções de doença de Chagas e de leishmaniose – como ambas são causadas por protozoários, os casos de falso positivo são comuns. Para isso, foi utilizado um conceito estendido da língua eletrônica, com o emprego de unidades sensoriais que identificam uma substância específica. “Adicionamos um antígeno ao filme e avaliamos a presença e a quantidade de anticorpos nas amostras de sangue a partir da resposta elétrica”, recorda Oliveira. “Nesse caso, a inserção de eletrodos seletivos no conjunto de unidades não seletivas aumentou a correlação de dados”, completa Riul.
Outra variação do projeto original foi desenvolvida pelo próprio Riul: o equipamento derivado tem um compartimento para receber pequenas amostras de líquido, em vez de ser mergulhado nele. Essa variação, microfluídica, pode ser útil, por exemplo, na medicina (já que precisaria de apenas uma gota de sangue do paciente) e em ocasiões em que a amostra é muito limitada ou o material utilizado nos sensores, muito caro.
Desafios de mercado
Os estudos com a língua eletrônica começaram a ser divulgados há mais de 10 anos. Na época, o projeto era liderado por pesquisadores da Embrapa e da USP, como os próprios Riul e Oliveira. Hoje, diversos grupos trabalham de forma isolada, mas colaborativa, com o equipamento – que ainda não chegou ao mercado. Uma das barreiras para isso é justamente sua própria sensibilidade. “O sistema é muito sensível e acaba respondendo a qualquer alteração no material analisado”, pondera Riul. “O mercado deseja uma margem de erro que ainda não detemos.”
Também serão necessários mais esforços em engenharia de dispositivos para aprimorar a parte eletrônica do equipamento. “Ainda não realizamos testes comerciais por serem muito caros e terem pouca relevância científica”, avalia Oliveira. “Esses procedimentos só se justificam se tivermos uma empresa disposta a investir no produto.”
Para Riul, as questões técnicas ainda sem resolução têm afastado o interesse privado no projeto. “Infelizmente não temos uma cultura de inovação no setor privado, as empresas querem algo pronto para lucro imediato, sem visão de médio e longo prazo”, acredita. Corrêa, no entanto, destaca a necessidade dessa aproximação. “A tecnologia em si está validada”, afirma. “A fase de melhorias para o uso comercial leva tempo, mas essa é a única tecnologia nacional do tipo e poderá ser produzida com um custo mais baixo no país.”
A língua eletrônica brasileira não é única. Algumas concorrentes têm, inclusive, versões comerciais, como a japonesa Insent e a europeia Alpha-mos, cujos modelos chegam a custar alguns milhares de reais – mas com projetos diferentes do nacional. “Eles operam em função de carga líquida em solução, trabalham bem com eletrólitos fortes, mas não com materiais que não formam íons, como a água com sacarose [o açúcar comum]”, diz Riul. “Se por um lado sua configuração permite mais controle sobre alguns parâmetros, por outro tem problemas com processos de miniaturização.”
Marcelo Garcia
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 310 (dezembro de 2013).