Lygia Clark: Uma (não) artista fundamental

Uma das maiores aventuras da arte da segunda metade do século 20 se passou no Rio de Janeiro. É isso que ainda é difícil de acreditar uma vez que temos instituições que não instituem nada, ao menos no campo da arte. Inhotim, uma iniciativa privada, é uma rara exceção. Mas, em que museus públicos posso ver uma sala com um bom conjunto de Pancettis, Volpis e Goeldis, para ficar restrito a nomes consagrados? E como ver Lygia Clark, ou mesmo Hélio Oiticica, a não ser em episódicas exposições temporárias que apresentam obras que estão em coleções privadas? Sem a convivência pública com as obras, elas se tornam precocemente lendas e mistérios. Só que não vêm da Idade Média, foram produzidas ainda há pouco. Elas deveriam fazer parte de nosso convívio cotidiano. Mas isso um dos maiores PIBs [Produto Interno Bruto] do mundo está longe de realizar. Muito longe. Por isso, é sempre oportuno falar em Lygia Clark.

Lygia empreendeu, muito precocemente, uma radical investigação pictórica sobre o plano

Lygia Clark nasceu em Belo Horizonte, em 1920. Já nos anos 1940 estava no Rio de Janeiro e estudou com Burle Marx. No início dos anos 1950, viajou para Paris, onde, entre outros, teve como mestre Fernand Léger. Ao retornar ao Rio de Janeiro, vai ser uma das fundadoras do Grupo Frente, em 1954. Uma reunião eclética de artistas na qual predominava a investigação sobre o abstracionismo geométrico em diálogo com o grupo paulista liderado por Waldemar Cordeiro. Lygia empreendeu, muito precocemente, uma radical investigação pictórica sobre o plano. Logo desaparecem os vestígios de sua formação parisiense para descobrirmos um surpreendente pensamento que abre mão de toda a tradição artesanal da pintura para pesquisar as consequências de um acontecimento plástico disciplinado pela geometria sobre o plano. A tinta é industrial e a pintura usaria instrumentos anódinos como a pistola, não o pincel. Ao mesmo tempo, a rica manifestação cromática de seu convívio com Paris é progressivamente reduzida ao cinza, ao preto e ao branco.

Hoje, é fácil dizer que uma organização conceitual conduziu uma das mais fecundas pesquisas sobre os possíveis desdobramentos da superfície para o espaço. Sim, porque Lygia, nas superfícies moduladas, fazia incisões sobre a superfície – a ‘linha orgânica’, que separava o quadro da parede e eliminava a tradicional moldura, sutilmente separava os planos dando-lhes volume, volume mínimo, mas volume. Digo que hoje é fácil afirmar isso tudo porque, na época, não se esqueçam, os próceres da arte moderna brasileira eram Portinari e Di Cavalcanti. Imaginem agora o significado desse trabalho de Lygia. Dessa linha orgânica. Desse espaço mínimo criado na superfície do quadro vai surgir a escultura: os Casulos. Segundo Ferreira Gullar, quando eles caem no chão viram os Bichos.

Veja imagens de Bichos, de Lygia Clark

Os Bichos de Lygia Clark são, para mim, o limite da escultura moderna. Não porque introduzem a participação do espectador na obra, mas pela construção de uma imanência múltipla, do mesmo ente ser vários, de uma articulação radical entre investigação do espaço moderno e arquitetura flexível. São pequenos monumentos definitivos para a história da arte, se essa disciplina tiver direito à existência. Toda obra escultórica maior de um Amilcar de Castro, de um Franz Weissmann e – por que não dizer? – de um Richard Serra, estão contidas pelo território delimitado pelos Bichos. Do alumínio rígido se desdobram nos Trepantes, esculturas de planos flexíveis em metal recortados que se esparramam sob a ação da gravidade sobre as superfícies que os apoiam. Já incorporada, evidentemente, a lição de Brancusi, os volumes ou ‘bases’ de apoio são partes da obra muito ativas. Em 1959, Ferreira Gullar redigiu o Manifesto Neoconcreto, marcando posição contra o ingênuo positivismo paulista do movimento concreto. A dimensão fenomenológica era introduzida para a apreensão da obra de arte e a reafirmação do caráter subjetivo de toda experiência estética. A obra de Lygia Clark foi, sem dúvida, uma das fontes dessa reflexão na sua aversão à objetividade.

A partir de 1966, Lygia rompe com dois membros fundamentais da equação estética: o autor e o espectador. Ela embaralha essas posições. O espectador está castrado da experiência do gozo estético a não ser que se submeta a participar da constituição da própria obra. Caminhando, o ato de recortar sobre um anel de papel colado de forma invertida de modo a formar uma fita de Möbius é de 1963. Mas esta é uma proposição solitária. A partir de Pedra e ar, de 1966, todas as experiências engajam cada vez mais o ‘outro’. Mas esse outro não é o público, pressuposto da fruição estética depois que esta desceu do céu da aristocracia para o chão democrático do século 19. É sempre um indivíduo particular que se engaja na constituição da própria obra. Lygia já não acredita nas disseminações populistas de distribuição democrática da fruição estética. Esta só seria possível com o indivíduo construindo a própria obra durante a fruição. Está colocada, na segunda metade do século 20, no Rio de Janeiro, uma das vertentes da chamada pós-modernidade, hipermodernidade, contemporaneidade, ou como queiram chamar isto que estamos vivendo.

Em Paris, enquanto conduzia suas pesquisas na Sorbonne, Lygia se submeteu à psicanálise com Pierre Fédida, um terapeuta com formação em filosofia, que insistia na relação entre o discurso e o corpo a partir de suas investigações psicossomáticas. A partir daí, Lygia desdobrou suas experiências artísticas, quando retornou ao Rio, em 1976, numa experiência psicoterapêutica que chamou de Estruturação do self.

A artista que se dizia uma não artista, protagonizou, ao mesmo tempo que seu amigo Hélio Oiticica, a passagem do moderno ao contemporâneo

Em texto recente, ‘O ‘estilo tardio’ de Lygia Clark’, escrito por ocasião da exposição retrospectiva no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, apresentei a seguinte questão: “Por que não ‘Estruturação do eu’ ou ‘Estruturação do moi’?”. Não se trata de importação pedante da palavra estrangeira pela simples razão de que não existem equivalentes na língua portuguesa ou francesa para a palavra self. Tanto o ‘eu’ como o ‘moi’, como o termo é às vezes impropriamente traduzido, seriam reduções psicológicas e o simples rebaixamento ao corpo consiste no mais frequente enfraquecimento da rica temática da obra. Self significa a totalidade do ser de uma pessoa, isto é, corpo e mente unidos de modo indissociável. Para Lygia, quem se desestruturava era o ser inteiro: o self. Se a estratégia do dispositivo fosse devolver ao indivíduo a plena posse sobre o ser inteiro durante o processo de sua estruturação, esta seria a questão de poder envolvida nesse dispositivo. Para esse ‘ser inteiro’ tomar sentido na prática da Estruturação do self, é preciso ter em conta que Lygia nunca abriu mão da hipótese do inconsciente freudiano, corrigido pela compreensão adquirida durante o processo de análise com Fédida. Desse modo, permanecerá a incompletude do ‘ser inteiro’ que continuará sem acesso ao recalcado. Resta, então, que a estratégia da Estruturação do self é consciente da impossibilidade de sua plena consumação. O poder do indivíduo sobre si mesmo nesse processo seria como uma variável que tende para o infinito sem nunca poder alcançá-lo. A estruturação se daria nesse interminável processo.

As consequências poéticas desse trabalho que se estendeu até sua morte, por infarto, em 1988, não cessaram. A artista que se dizia uma não artista, protagonizou, ao mesmo tempo que seu amigo Hélio Oiticica, a passagem do moderno ao contemporâneo. A partir daqui, surgiu uma contribuição inédita à história da arte da segunda metade do século 20.

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Paulo Sergio Duarte
Centro Cultural Candido Mendes
Universidade Candido Mendes

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