Rio de Janeiro

Neste ano, o poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998) faria 100 anos. As homenagens pelo centenário de seu nascimento importam porque nos permitem reviver a força de seu pensamento e de sua poesia. Com sua literatura, Paz convocou conterrâneos e forasteiros a olhar para si e para o outro – com crítica e benevolência. E o fez com a lucidez e a beleza dos grandes menestréis.

Para conversar sobre a obra do prêmio Nobel de Literatura de 1990, o sobreCultura convidou Maria Esther Maciel, escritora e professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Maciel conheceu Paz pessoalmente quando ela fazia pesquisas no México para sua tese de doutorado. Autora de três livros sobre ele – As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz; A lição do fogo: amor e erotismo em Octavio Paz e A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz –, ela acredita que a originalidade do poeta mexicano reside na forma prismática com que conduziu suas reflexões. “Sua maior contribuição foi poder transitar em múltiplos campos do saber e da criação, sem abrir mão do olhar crítico sobre o mundo e o tempo em que viveu.”

Maria Esther Maciel
(foto: Eustáquio Neves)

sobreCultura: Octavio Paz percorreu diversos gêneros literários – do ensaio à poesia, do conto até uma peça de teatro –, editou revistas, foi tradutor e diplomata. Essa plasticidade refletida em sua vida e sua obra parece ter relação direta com sua formação eclética e o convívio com grandes intelectuais. Quais foram suas principais influências?

Maria Esther Maciel: Octavio Paz sempre viveu sob o signo da pluralidade. Além de ter aliado o ofício de poeta ao trabalho de reflexão crítica, fundou revistas, traduziu obras de diferentes nacionalidades, ministrou cursos e conferências, recebeu prêmios importantes, cultivou polêmicas, incursionou na antropologia, na história, na filosofia, nas artes e na política. Sua formação, as muitas viagens que realizou e o convívio que teve com figuras eminentes do mundo literário e intelectual possibilitaram isso. Paz soube conjugar suas raízes mexicanas e todo o passado pré-colombiano com a tradição moderna ocidental e as culturas orientais.

Creio que o contato direto com o surrealismo francês foi sua experiência literária mais significativa. Ainda que não compartilhasse inteiramente dos princípios defendidos pelo movimento, como a crença ilimitada nos poderes da inspiração e a defesa da chamada art engagé, ele incorporou muitos procedimentos surrealistas à sua poesia e à sua maneira de pensar, tendo ainda cultivado grande fascínio pela figura de André Breton. O que, entretanto, não basta para marcar sua filiação a essa corrente, visto que ele também acrescentou ao legado surrealista o contato próximo com a poesia modernista anglo-americana (sobretudo de T.S. Eliot e Ezra Pound), a experiência barroca da poeta mexicana Sor Juana Inés de La Cruz, as poéticas de vanguarda, as formas sintéticas e visuais da poesia japonesa e o pensamento de Claude Lévi-Strauss.

A história e a política permeiam vários ensaios de Paz. Em O ogro filantrópico, ele critica as burocracias estatais; em Os filhos do barro, exalta a juventude rebelde dos anos 1960 e, em O labirinto da solidão, resgata mitos e história para desenhar os alicerces da ‘mexicanidade’. O que tem de original no trabalho dele?
Octavio Paz sempre exerceu, em consonância com o ofício de poeta, um papel intelectual bastante ativo, com intervenções contundentes (e por vezes polêmicas) no debate político sobre o México, a América Latina e outros lugares do mundo. Sua paixão crítica o levou a questionar muitas estruturas políticas, sociais e culturais do seu tempo, bem como a rever criticamente vários acontecimentos históricos do passado.

Desde o início de sua trajetória poética nos anos 1930, a história e a política estiveram intrinsecamente ligadas ao seu trabalho como escritor. Chegou a atuar em movimentos políticos de esquerda no México e na Espanha, até admitir que, se a experiência espanhola afirmou seu fervor revolucionário, ela também o fez desconfiar das teorias revolucionárias. Isso o levou não apenas a uma visão mais crítica dos dogmas partidários e das cristalizações ideológicas, como também ao exercício livre do pensamento. A partir daí, não deixou de praticar essa liberdade, assumindo a intensa tarefa de investigar criticamente os signos políticos de seu tempo, num trabalho de desmascaramento e decifração das estruturas de poder.

Foi contra qualquer forma de autoritarismo (de esquerda ou de direita) e chegou a renunciar ao cargo de embaixador do México na Índia, como protesto contra o massacre de 350 estudantes, promovido pelo governo mexicano em outubro de 1968.

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Em sua obra magnífica sobre a questão da identidade mexicana, ‘O labirinto da solidão’, Paz fez um trabalho arqueológico de grande relevância: reviu e redimensionou mitos e práticas das civilizações indígenas do México pré-hispânico. (foto: Alicia Ivanissevich)

Quanto ao seu trabalho de revisão crítica do passado mexicano, pode-se dizer que Paz fez um trabalho arqueológico de grande relevância em O labirinto da solidão, obra magnífica sobre a questão da identidade mexicana, a qual ele não desvincula da noção de ‘outridade’. Os mitos e as práticas culturais das civilizações indígenas do México pré-hispânico foram revistos e redimensionados por ele, à luz de suas inquietações em relação ao presente. No livro Posdata (1970), por exemplo, que dá continuidade ao Labirinto, Paz empreende o que chama de ‘crítica da pirâmide’, em que resgata o antigo ritual asteca de sacrifício humano para criticar as estruturas de poder do México no contexto pós-revolucionário, indignado que estava com a mentalidade autoritária de um governo capaz, segundo ele, de transformar o poder político num exercício sagrado e incorporar, com isso, o modelo asteca de poder, assentado na prática da violência.

A originalidade de Paz no trato das questões históricas e políticas está no desvio dos binarismos redutores e na forma prismática com que conduziu suas reflexões. Ainda que se possa discordar de certos matizes de sua visão política nos seus últimos anos de vida, a ousadia e a independência com que ele exerceu seu pensamento imprimiram uma marca singular nos diagnósticos e prognósticos que fez do nosso tempo. Além disso, nunca abdicou da poesia no trato desses temas, investigando inventivamente os signos da história e da política a partir do exercício livre da imaginação.

Como seus ensaios influenciaram escritores e pensadores?
É difícil dizer com precisão sobre os influxos de sua obra e seu pensamento nos trabalhos de outros autores. Mas posso dizer que os ensaios de Paz iluminaram poetas e intelectuais de todos os cantos do mundo. Sobretudo após ter recebido o prêmio Nobel de Literatura em 1990, sua obra alcançou uma dimensão enorme, tanto no Ocidente quanto em alguns países orientais, como o Japão e a Índia. No Brasil, temos exemplos de vários escritores e pensadores que tiveram um diálogo profícuo com a obra paziana, como Haroldo de Campos, Silviano Santiago e Celso Lafer.

Sua relação com a história foi dialógica e criativa, como foi também a sua convivência com diferentes culturas

Na França, seus estudos sobre modernidade ainda ecoam em obras de certos ensaístas contemporâneos, como Antoine Compagnon, e sua poesia teve impacto em poetas como Yves Bonnefoy. Creio que a maior contribuição de sua obra para a literatura e o pensamento contemporâneos foi sua capacidade de transitar em múltiplos campos do saber e da criação, sem abrir mão do olhar crítico sobre o mundo e o tempo em que viveu. Além disso, converteu a poesia num antídoto eficaz contra a fixidez da sensibilidade e o obscurecimento da lucidez crítica.

Sua relação com a história foi dialógica e criativa, como foi também a sua convivência com diferentes culturas. O respeito pela outridade permeou sua relação com o mundo e o conhecimento. Essas e outras coisas foram o legado de Paz aos seus pares e às novas gerações.

Em Os filhos do barro, como pode ser entendido o romantismo abordado por Paz? O romântico a que ele alude é o poeta que extrai sua força da imaginação, não?
Ao investigar a história da poesia moderna, do romantismo alemão às crises das vanguardas, Paz realizou em Os filhos do barro uma leitura paradoxal da modernidade, por flagrá-la sobretudo em seus pontos móveis de tensão e ambivalência. O romantismo, nesse sentido, foi para ele o primeiro grande movimento moderno, o primeiro a combinar – de maneira indissociável – tradição e ruptura, origem e originalidade, nostalgia e utopia, mito e história, religião e revolução, lucidez e paixão, analogia e ironia, pensamento crítico e imaginação criadora. Foi ainda a primeira voz moderna a negar os valores da própria modernidade.

É clara sua forte cumplicidade com os princípios que nortearam os poetas românticos – ele mesmo concebe a poesia como uma voz sagrada e atemporal que, entretanto, se encarna na história e se dá a ver como força crítica e revolucionária. Não à toa, Paz se interessou tanto pelo surrealismo, movimento que reabilitou e radicalizou muitos valores do romantismo, incluindo o gosto pelo onírico e o culto da imaginação.

E no caso do romantismo brasileiro? Pode-se falar dessa vanguarda poética? Ou, no Brasil, o romantismo representou uma experiência cultural sem rasgos de vanguardismo?
Como o próprio Paz mostrou, o romantismo se desdobrou em diferentes vertentes literárias e culturais. Vários romantismos compuseram o período romântico na Europa e em outros continentes. E todos eles mantiveram relações de afinidade e dissonância uns com os outros. No caso do romantismo brasileiro, se a experiência poética predominante foi a de viés mais sentimental, isso não significa a total ausência de vanguardismo.

Nosso romantismo teve também seus pontos de radicalidade. Foi uma experiência cultural ampla, que, ao mesmo tempo, dialogou com algumas vertentes estrangeiras e adquiriu rasgos próprios, moldados pelo próprio contexto histórico nacional. Um poeta como Sousândrade seguiu um viés bastante ousado e inovador. Mesmo José de Alencar e Álvares de Azevedo ousaram em procedimentos literários mais radicais.

Num artigo seu de 1994, ‘Poéticas da lucidez’, a senhora mostra como alguns poetas modernos usaram a poesia como espaço de reflexão crítica sobre a cultura de seu tempo. Como Paz usou a linguagem poética para apontar suas críticas?
Para Octavio Paz, a poesia foi uma espécie de ‘estrela fixa’, em torno da qual toda a sua obra se construiu. Se ele pensou o mundo, a linguagem e a própria poesia no interior de seus próprios poemas, não foi menor o impacto que a poesia causou nas suas reflexões críticas sobre a modernidade, as culturas pré-hispânicas, as artes contemporâneas, a história, a política etc. Sem abdicar do papel de poeta no seu trabalho intelectual, Paz adotou uma maneira bem própria de pensar.

Sua escrita, sempre em movimento, desvia-se das amarras conceituais, abre-se às dúvidas e incertezas

O apreço pela lógica do paradoxo e pelo jogo de contrários atravessa seus ensaios críticos em geral. Para ele, o pensamento é também um exercício dos sentidos e da imaginação. Sua escrita, sempre em movimento, desvia-se das amarras conceituais, abre-se às dúvidas e incertezas.

Daí seus livros sempre se configurarem como réplica, confirmação e negação dos anteriores. Costumo dizer que essa eleição da poesia como ponto de irradiação de todo o seu trabalho intelectual foi o que lhe possibilitou romper com as cristalizações e os binarismos excludentes.

A crítica à poesia aparece na correspondência trocada entre Octavio Paz e Haroldo de Campos, por ocasião da tradução de um poema de Paz ao português, ‘Blanco’ por Campos, não? Quais são suas principais objeções?
O diálogo, ao longo dos anos, entre Octavio Paz e Haroldo de Campos não foi uma mera troca de aquiescências e amenidades. A amizade que cultivaram foi movida tanto pela admiração recíproca quanto pela inquietude crítica de um frente ao trabalho do outro. Embora compartilhassem vários interesses comuns, como o fascínio pela linhagem poética de Mallarmé, houve também discordâncias entre eles, por exemplo, quanto à poesia metafórica praticada por Paz e outros poetas hispano-americanos.

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Para Maciel, Octavio Paz soube conjugar suas raízes mexicanas e todo o passado pré-colombiano com a tradição moderna ocidental e as culturas orientais. (foto: Alicia Ivanissevich)

Paz foi um adepto da metáfora, e Campos a refutou, em nome da linguagem poética enxuta e concentrada. Daí o poeta mexicano ter questionado “o tom desdenhoso” com que Haroldo de Campos caracterizou a poesia hispano-americana ao associá-la a uma “tradição metafórica e retórico-discursiva”. Paz afirma não ter nada contra essa tradição, por considerá-la uma grande poesia viva. Além disso, nega que ela seja exclusiva da língua espanhola. Para ele, mesmo a poesia concreta, ao buscar se desvencilhar do discurso, não deixa de ser retórica. E argumenta que os poemas concretos sempre vêm acompanhados de uma explicação. É um debate, a meu ver, que dá consistência e vigor à relação pessoal e intelectual dos dois poetas.

Que lugar Paz ocupa hoje na literatura latino-americana?
Sem dúvida, um lugar canônico na história da literatura e do pensamento latino-americano, não apenas por ter recebido o prêmio Nobel, mas também pelo enorme legado que deixou. Por ter atuado de maneira incisiva nos rumos da modernidade latino-americana, em suas interseções com a diversidade cultural de outros povos, ele mostrou ao mundo que ser mexicano ou latino-americano é também um exercício de cosmopolitismo e de abertura à alteridade.

À feição de outros grandes autores do nosso continente, como Jorge Luis Borges, Paz subverteu as oposições entre universalismo e americanismo, identidade e alteridade, inserindo a América Latina no circuito mundial das trocas culturais, sem com isso apagar suas especificidades. Dessa forma, evidenciou o caráter paradoxal de nossa história e nossas literaturas, tomando as culturas latino-americanas como um prolongamento e uma transgressão do que se define como Ocidente. E é nesse sentido que a expressão “busca da identidade” lhe soava imprópria, pois não achava que o que chamamos identidade fosse algo que se pudesse ter, perder, recobrar; tampouco a via como uma substância ou uma essência, uma vez que nela ressoam sempre as vozes diferenciais da ‘outridade’.

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