Em 2004, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou o ‘ofício das baianas de acarajé’ como ‘patrimônio cultural brasileiro’, inscrito no Livro dos saberes do patrimônio imaterial. Esse registro deriva de ações dessa instituição, com base em políticas públicas, e sobretudo da atuação das próprias ‘baianas’.
Antes que o registro ocorresse, a categoria ‘patrimônio’, de certa forma, já era produzida pelas baianas de acarajé, embora estas não a entendessem do mesmo modo que os agentes do Iphan, nem limitassem sua compreensão a uma noção estritamente ‘jurídica’. Trata-se do reconhecimento da relevância social e cultural dessa atividade singular.
O pedido de registro do ‘ofício das baianas de acarajé’ como bem imaterial foi proposto em conjunto pela Associação das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivos e Similares (Abam) da Bahia, pelo Terreiro Ilé Axé Opô Afonjá (no mesmo estado) e pelo Centro de Estudos Afro Orientais (CEAO), da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.
Assim, essa proposta reuniu uma associação civil que organiza essas trabalhadoras, um centro de estudos acadêmico e uma entidade religiosa (um terreiro de candomblé, tombado pelo Iphan em 2000). Pode-se dizer, portanto, que o registro do ‘ofício das baianas de acarajé’ faz parte de um processo mais amplo de políticas de reconhecimento de bens culturais que visa valorizar a ‘cultura afrodescendente’ no qual estão incluídos os tombamentos de terreiros de candomblé, na década de 1980, sob a assessoria de antropólogos.
Como a organização das baianas tem uma expressão pública de grande destaque, e somando-se a ela a intelectualidade baiana formadora do CEAO e o apoio de um dos terreiros mais antigos de Salvador, dificilmente esse ‘bem’ não teria sido registrado. Mas vale observar que há uma estrutura anterior ao evento do registro que possibilitou seu êxito – estrutura em que os agentes decisivos foram as próprias baianas e a articulação de suas redes sociais e simbólicas.
A pesquisa aqui relatada – tema de dissertação de mestrado e de livro da autora – foi estimulada pelo interesse de evidenciar as razões pelas quais, em dado momento histórico, políticas públicas identificaram o ofício das baianas de acarajé como patrimônio imaterial. O registro do ‘ofício’ e as consequências desse fato no pensamento e nas práticas sociais das baianas mostraram ser uma situação social e cultural especialmente propícia para uma discussão mais aprofundada.
Patrimônio imaterial
A noção de ‘patrimônio imaterial’ foi adotada pela política patrimonial brasileira por meio da incorporação da proposta formulada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de valorização de aspectos ‘intangíveis’ da cultura.
Esse conceito ganhou expressão jurídica no Brasil no Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como política do patrimônio cultural brasileiro, legitimando as ações oficiais que seriam acionadas nesse sentido.
As políticas de patrimonialização, desde a década de 1970, valorizavam os aspectos históricos, arquitetônicos e arqueológicos expressos pelos chamados ‘bens materiais’. Hoje, pode-se dizer que o Iphan dialoga com teorias antropológicas ao formular uma ideia de patrimônio diferenciada dessa abordagem histórica ou arquitetônica, buscando uma perspectiva que promova a ‘diversidade cultural’.
Os bens materiais são tombados, enquanto os bens imateriais são registrados pelo Iphan. No primeiro caso, a expectativa é preservar as características materiais, expressas, em geral, por monumentos, construções arquitetônicas, obras artísticas.
No caso dos bens imateriais, é proposto o registro dos aspectos culturais ou simbólicos que envolvem uma ‘manifestação cultural’. O Iphan registrou, por exemplo, o jongo no Sudeste, o frevo, a roda de capoeira e outros. O registro, além do reconhecimento do valor cultural de uma manifestação popular específica, se propõe a acompanhar as transformações que esta sofreu ou venha a sofrer ao longo do tempo.
O principal objetivo do registro do ofício das baianas de acarajé como um patrimônio cultural foi o reconhecimento do valor simbólico de tal atividade. Esse valor estaria vinculado ao modo de fazer o acarajé, às roupas usadas pelas ‘baianas’, à etnicidade e, principalmente, às religiões afro-brasileiras. Aquele ‘ofício’ aparece, assim, como o representante de um legado étnico e religioso.
O parecer do registro do ofício das baianas de acarajé, também assinado por um antropólogo, ressalta que, com o surgimento do ‘acarajé de Jesus’, vendido por evangélicos, esse alimento estaria se “descaracterizando”, ao ser associado a Jesus e aos cultos evangélicos, opondo-se à esfera religiosa do candomblé.
Essa ressignificação do acarajé – ou seja, o “acarajé de Jesus” – é contestada pela parcela das baianas vinculada às religiões afro-brasileiras que reivindica a ‘origem’ do acarajé nos terreiros e ressalta a perda de seu significado religioso com a apropriação evangélica. Pode-se dizer que essa divergência também faz parte de uma ampla estrutura de desentendimentos entre essas duas vertentes religiosas expressos, por exemplo, em episódios de intolerância entre seus partidários.
No inventário do Iphan, o acarajé é apresentado como um bolinho preparado com feijão-fradinho, cebola e sal, frito em azeite de dendê, e cujo nome, no idioma ioruba, significaria ‘comer fogo’: acará (fogo) e ajeum (comer).
Na ‘certidão’ do registro, lê-se que o acarajé é originário do golfo de Benin, na África, e que seu comércio teve início ainda no período colonial. O documento explica que é considerado uma comida sagrada, utilizado em rituais do candomblé, nos quais é ofertado aos orixás, principalmente a Iansã e a Xangô.
O registro do ‘ofício’ é visto, pelas baianas, como instrumento de legitimação de seu trabalho, diferenciando-as, por exemplo, de todos os demais vendedores ambulantes. Mas, em outras ocasiões, essas baianas questionam: “Para que serve o registro?”. Há uma preocupação das baianas de acarajé quanto à utilidade da medida. Na maioria dos casos, as baianas utilizam o registro como argumento para vencer dificuldades de legalização do ponto de venda de acarajé.
Nina Pinheiro Bitar
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
Universidade Federal do Rio de Janeiro