Concussão é o nome que se dá ao trauma cerebral que provoca sintomas sem lesão estrutural. Nenhuma lesão? Nem tanto assim. Concussion é também o nome do filme exibido recentemente no Brasil com o horrível título Um homem entre gigantes, estrelado por Will Smith. O filme conta a história de um neuropatologista nigeriano, Bennet Ifeakandu Omalu que, ao autopsiar e examinar o cérebro de um ex-jogador de futebol americano que apresentava problemas neurológicos e psiquiátricos, terminaria por descobrir a relação entre sua doença e a prática continuada desse violento esporte.
Evidências sugerindo a relação entre trauma cerebral esportivo e deficiências neurológicas motoras, psiquiátricas e cognitivas não são propriamente novas e foram descobertas no pugilismo. Em 1928, o patologista norte-americano Harrison Martland (1883-1954), professor de medicina forense na Universidade de Nova York (Estados Unidos), descreveu 23 casos reportados a ele por um agente de boxeadores que sofriam de punch-drunk state (demência pugilística).
Em 1934, ele apresentou a história detalhada de um homem de 38 anos que lutava desde os 16 e que havia sofrido dois knockouts na carreira, um deles com uma hora de duração! Vinte anos depois do início dos sintomas, seu diagnóstico foi o de doença de Parkinson.
Estudando 224 lutadores de boxe aposentados entre uma população de 16.781 atletas registrados entre 1929 e 1955, o neurologista Anthony Roberts (1932-2011) encontrou lesões cerebrais em 37 casos (17% do total) e publicou, em 1969, o livro Danos cerebrais em pugilistas: Um estudo da prevalência da encefalopatia traumática entre ex-lutadores de boxe profissionais. Seus resultados, ainda que considerando as limitações tecnológicas da época, a possibilidade de influências coexistentes, como alcoolismo e uso de drogas, e possíveis predisposições genéticas, podem ser tidos como indicativos da relação entre o esporte e as lesões.
John Arthur Nicholas Corsellis, professor emérito de neuropatologia do Runwell Hospital, em Wickford (Inglaterra), e seus colegas descreveram em 1973 as alterações patológicas em 15 cérebros de boxeadores: degeneração com a presença dos chamados ‘emaranhados neurofibrilares’, perda neuronal, lesões em partes do cerebelo e abertura de comunicações em uma estrutura no meio do cérebro chamada cavum septum pellucidum.
Mais recentemente, tem sido estudada a forma moderna do problema, que se convencionou chamar de CTE (sigla em inglês para ‘encefalopatia traumática crônica’). Essa forma incluiu alterações clínicas e patológicas ausentes nas descrições anteriores.
O primeiro caso da CTE foi descrito por Bennet Omalu e seus colaboradores em 2005, a partir da autopsia do jogador profissional de futebol americano Mike Webster, do time do Pittsburgh Steelers, aposentado da National Football League (NFL). Omalu, sexto de sete irmãos, neuropatologista nigeriano naturalizado norte-americano em 2015, nasceu em 1968 na cidade de Nnokwa. Em 1994, terminou um estágio em epidemiologia na Universidade de Washington e, em 1995, mudou-se para a Universidade de Columbia para fazer residência médica em anatomia patológica. Sua carreira nos Estados Uni-
dos inclui formação em MBA pela Escola de Negócios Tepper, na Universidade CarnegieMellon, e um título em saúde pública pela Universidade de Pittsburgh.
Estágios evolutivos da CTE, segundo Ann McKee, 2013.
Outros casos foram acrescentados por Omalu em 2006, 2010 e 2011. Em 2009, a neuropatologista norte-americana Ann McKee e seu grupo, da Escola de Medicina da Universidade de Boston, encontraram 48 casos bem documentados de CTE. Em 2013, ela propôs quatro estágios sucessivos para a síndrome, sob o ponto de vista patológico (figura).
Na forma anterior, as alterações motoras semelhantes à doença de Parkinson (tremores, instabilidade na postura, entre outros) eram as principais, ao passo que a forma descrita por Omalu inclui anormalidades neuropsiquiátricas e comportamentais que predominam no início da doença e são marcadas ao longo de toda a evolução. As alterações do comportamento e do humor são precoces, com agitação, depressão, agressividade e isolamento social. As alterações cognitivas, que em alguns casos tendem a surgir posteriormente, incluem problemas de memória, atenção, linguagem, processamento das informações e planejamento das ações.
Os males do esporte
Existem hoje evidências sólidas mostrando que jogadores profissionais de futebol americano estão sujeitos a deficiências cognitivas, alterações microestruturais da substância branca identificáveis por técnicas de neuroimagem, além de alterações metabólicas e moleculares desproporcionais à sua idade. Sabe-se também que não é apenas a repetição de concussões que pode levar à CTE, mas talvez um único trauma, ou uma sucessão de pequenos traumas, pode fazê-lo, mesmo em quem não é esportista.
As alterações verificadas na CTE são semelhantes às que ocorrem em outras doenças como na demência de Alzheimer. Uma das hipóteses que se consideram hoje é a de que o neurotrauma repetitivo aumenta o risco de alterações comportamentais e cognitivas relacionadas à idade. Assim, os traumas não levariam a uma doença completamente separada e independente, mas facilitariam a degeneração verificada em processos demenciais já conhecidos.
De certa forma, os traumatismos estariam, então, associados à diminuição da nossa ‘reserva estratégica’ cerebral, tornando os jogadores de futebol americano e boxeadores mais sujeitos a desordens neurodegenerativas que aconteceriam de forma natural muito mais tardiamente na vida.
Traumas não são benéficos ao sistema nervoso central. A CTE é uma afecção que tem sido demonstrada em atletas amadores e profissionais envolvidos em esportes com impacto interpessoal, bem como em militares expostos a explosões próximas.
O neurologista norte-americano Thomas Talavage, da Escola Weldon de Engenharia Biomédica da Universidade de Purdue (EUA), estudou jogadores entre 15 e 19 anos sem concussão e encontrou, mesmo assim, sinais de alterações neuropsicológicas e cognitivas, sugerindo a existência de subconcussões potencialmente nocivas.
O grupo do também neurologista norte-americano Robert Stern, da Universidade de Boston, apresentou, em 2013, resultados de análises dos cérebros de 36 indivíduos com CTE e suas autópsias: o futebol americano era o esporte de 80,6% deles, mas havia também três jogadores de hockey, um praticante de luta livre e três boxeadores. Em 11 casos, as alterações cognitivas surgiram primeiro (problemas de memória e planejamento executivo), ao passo que, em 13, as alterações do comportamento (explosividade, impulsividade, violência física e/ou verbal) vieram antes. As alterações do humor, sobretudo depressão, abriram o quadro em nove casos. Em nenhum deles, o primeiro sintoma foi motor – a idade média para o início dos sintomas foi 57,7 anos e, para o diagnóstico de demência, 72,6 anos. O prazo médio entre o diagnóstico da demência e a morte foi de oito anos. Morte por suicídio ocorreu em 18,2%.
Há, portanto, dois grupos de CTE: os que começam com distúrbios de comportamento, com início mais precoce, os que abrem o quadro com problemas na cognição – estes mais propensos ao desenvolvimento de demência. Os fenômenos motores, como síndrome parkinsonina, parecem ser mais comuns da CTE em boxeadores.
A CTE é uma doença degenerativa, progressiva, que pode ser desencadeada por trauma frequente, ocasional ou mesmo único. Ela envolve anormalidades em proteínas que participam no desenvolvimento de demências, como a tau – esta proteína está presente nas células nervosas, tem papel fundamental na estrutura do cérebro e na eliminação de proteínas indesejadas, como a beta-amiloide. O desarranjo das proteínas tau dentro dos neurônios produz ‘novelos’ ou ‘emaranhados’ neurofibrilares, que são os selos da doença no cérebro.
Diversão com pequenos deslizes
Um homem entre gigantes, escrito e dirigido por Peter Landesman, baseado no romance Game brain, de Jeanne Marie Laskas (2009), é um filme que cumpre o que promete: entreter o espectador. O roteiro e a produção não fazem feio, garantindo diversão. Mike Webster, o futebolista aposentado, é encontrado morto na carroceria de sua pickup. O corpo é então autopsiado por Omalu, que verifica a presença de lesões em seu cérebro.
O herói supõe que as alterações sejam decorrentes dos traumas cranianos sofridos ao longo da carreira e, juntamente com seus colegas, publica os resultados, propondo que a morte tenha sido causada pela prática do esporte. Omalu descobre, em seguida, que outros três atletas já falecidos, Terry Long, Justin Strzelczyk e Andre Waters, sofriam dos mesmos sintomas que Mike.
O filme então é construído sobre a sua descoberta, a pressão sofrida pelo protagonista para que os resultados não fossem divulgados ou admitidos, e a vitória do bem sobre o mal. Os ingredientes hollywoodianos estão lá: o sonho de se tornar um cidadão dos Estados Unidos acima de tudo, a certeza de que a verdade sempre triunfa e vence o mal, e a fábula do imigrante inteligente representativo de minorias que com seu sotaque – bem trabalhado por Will Smith, por sinal – é finalmente reconhecido e supera tudo e todos. Nada a ponto de comprometer o divertimento, mesmo com alguns deslizes científicos.
O espectador é levado a imaginar que a descoberta de Omalu se deu a partir do zero. De fato, desde 1928, já se sabia das consequências do trauma repetido sobre o cérebro. Ele não descobriu a doença, mas chamou a atenção para a sua importância nos jogadores de futebol americano, além de nos boxeadores. Seu trabalho alerta para a necessidade de proteger o cérebro de traumas repetidos e contínuos, com consequências potencialmente desastrosas para o sistema nervoso central.
E o que podemos fazer para termos cérebros saudáveis pelo tempo mais longo possível? Além de ir ao cinema e proporcionar a eles o maior e mais variado número de experiências cognitivas possíveis, é fundamental praticar esportes regularmente, sem traumatismo craniano… Complementam as medidas: não fumar, tratar hipertensão, diabetes e colesterol elevado, quando for o caso, e alimentar-se de maneira saudável.
Tratar bem o cérebro é a melhor forma de proporcionar a nós mesmos uma vida longa e feliz.
Maurice Vincent
Faculdade de Medicina,
Universidade Federal do Rio de Janeiro