Um comentário muito apropriado foi publicado recentemente na revista científica Nature a respeito da suposta distribuição geográfica de talentos para certos esportes. Em essência, o texto mencionava que, se alguém quisesse elaborar hipóteses sobre a habilidade que os austríacos exibem na prática do esqui, os suíços no montanhismo e os suecos e russos no tênis, a discussão provavelmente se restringiria às diferenças culturais de cada país e à possível influência da topografia nos dois primeiros casos.
No entanto, ao observar que os atletas quenianos são os que mais vitórias alcançam, atualmente, nas maratonas, a explicação passa de imediato para o âmbito da genética. Essa noção parece tão arraigada que quase atinge o status de verdade incontestável. As pessoas costumam colocar os maratonistas vencedores em uma categoria definida frouxamente como ‘negros de pernas finas’. Assim, se um queniano se inscreve em uma maratona, é a priori considerado forte candidato à vitória, seja qual for o seu currículo desportivo.
No caso dos quenianos, ninguém pensa em influências do meio ambiente. Raros são os que levam em conta os aspectos socioeconômicos. Um exemplo: para correr não é indispensável adquirir equipamento especializado e caro, como nos esportes mencionados no início do texto. Essas pessoas não pensam que, para praticar certos esportes, é preciso associar-se a clubes, o que certamente excluiria uma grande parcela dos negros de pernas finas.
Ninguém aventa a possibilidade de que, em vários países africanos (e no Brasil também), as pessoas mais pobres muitas vezes têm que correr para chegar na escola, na igreja, no trabalho etc., ou de que a magreza que permite o bom desempenho em maratonas pode ser consequência de uma alimentação bem menos rica que aquela dos países do chamado Primeiro Mundo.
Curiosamente, nem sempre os quenianos lideraram essas provas. As corridas de curta e longa distâncias eram dominadas por europeus até três ou duas décadas atrás. Essa constatação aponta para outro fator socioeconômico. É possível que, até há bem pouco tempo, as delegações de negros de pernas finas não pudessem competir em nível internacional simplesmente por falta de recursos.
O papel das mutações
Deve-se perguntar por que as mutações capazes de gerar bons maratonistas se restringiriam a uma região específica. Por que Tanzânia, Moçambique, Zâmbia e Angola não são tidos como países geradores de maratonistas? É importante considerar tais fatores, principalmente em um continente com fronteiras fluidas como a África.
Mais ainda, é preciso investigar quais pressões seletivas teriam favorecido o aumento da frequência de genes ligados ao desempenho atlético somente em certas partes do planeta. Que intensidade de seleção estaria atuando sobre os quenianos? Atletas etíopes e marroquinos, com biótipos semelhantes ao dos quenianos, também têm obtido bons resultados em corridas longas, mas vale lembrar que as condições de vida na população pobre, em seus países, são as mesmas do Quênia.
A crença no esporte étnico estimulou pesquisas mais sistemáticas. Os cientistas interessados no assunto passaram a dividir os humanos, do ponto de vista genético-muscular, em dois grupos: os que têm fibras musculares vermelhas de resposta rápida (para atividades ditas de explosão) e os que têm fibras brancas, de resposta lenta. Os segundos seriam os maratonistas.
Embora de fato existam diferenças individuais entre portadores de um ou de outro tipo de fibra, ninguém demonstrou ainda que tais genes são mais frequentes entre os quenianos. Pesquisas populacionais também buscam determinar se mutações em certos genes (por exemplo, o gene ACTN3, que produz a actinina, uma proteína do músculo) beneficiariam o desempenho atlético.
Até agora, porém, não há evidências convincentes de que, no caso da maratona, certas populações foram privilegiadas com tais mutações. Se instado a opinar sobre esse tema, o leitor mais cauteloso deve ponderar se existiriam também os ‘genes do futebol’ e se ultimamente estes estariam suprimidos, em especial nos jogadores da seleção masculina.
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
franklin@bioqmed.ufrj.br