Esta imagem é uma fotografia ou foi produzida através de computação gráfica?
A pergunta é bastante frequente nos dias atuais, uma vez que as imagens fotográficas já não carregam o estatuto de verdade que lhes era conferido no passado. Antigamente, estávamos acostumados a compreender a fotografia como um documento comprobatório da realidade devido a seu caráter indicial, que estabeleceria um vínculo direto com o referente no mundo real.
Hoje sabemos que não só a fotografia é isenta de objetividade documental, como também pode ser facilmente alterada pelos meios eletrônicos. Assim, passamos a duvidar das imagens, particularmente daquelas que nos causam estranhamento.
Mas, afinal, como foi produzida a imagem que aqui se apresenta? Trata-se de uma imagem fotográfica, produzida por câmera digital, que, entretanto, não recebeu nenhuma alteração eletrônica posterior. Seus desenhos fractais formam-se por meio de reflexos de prédios espelhados na superfície da água.
A foto faz parte de uma série que desenvolvi sobre a paisagem refletida no rio Spree, em Berlim. O aspecto abstrato da imagem origina-se por meio das ondulações produzidas no ambiente aquático e sua natureza cambiante e fluida. A fotografia permite congelar um instante que passaria despercebido no turbilhão do tempo.
As relações entre luz, água e tempo fascinaram inúmeros artistas e pensadores ao longo da história da arte. Heráclito já associava o devir temporal às correntes aquáticas. Da Vinci acrescentaria que uma das características mais potentes da pintura seria sua capacidade de captar os estados transitórios da matéria, como as brumas fugidias ou o movimento ondulante de peixes na água. Os reflexos também serviram de inspiração para os impressionistas, que viam na superfície dos rios a possibilidade de fragmentar a luz através dos processos óticos de reflexão e refração, salientando o caráter efêmero da existência.
A fotografia e o cinema ampliaram ainda mais as possibilidades temporais de captação da luz refletida na água, gerando inúmeras obras de grande qualidade artística. Na atual modernidade líquida, em que simulacros substituem o real e nossa percepção é constantemente bombardeada por imagens virtuais, olhar para o fluxo dos rios e perceber nele a efemeridade do tempo e os mistérios da luz na natureza é tarefa mais que necessária, mesmo que o que encontremos ali se assemelhe mais a nossas projeções mentais do que ao reino das coisas em si.
Hugo Fortes
Artista e professor da Escola de Comunicações e Artes
Universidade de São Paulo
Texto originalmente publicado no sobreCultura 18 (jan/fev 2015).