Quando o estruturalismo surgiu, no início dos anos 1950, a Europa vivia um profundo mal-estar de civilização. A primeira metade do século jogara por terra as promessas do Iluminismo. As Grandes Guerras, o Holocausto, a desesperança nascida da descoberta dos crimes de Stalin geraram, na intelectualidade europeia, um sentimento de desamparo e de rejeição à própria história. O homem ocidental parecia ter perdido a inteligibilidade sobre si e sobre os destinos do mundo. As antigas formas de saber não traziam respostas confortadoras para as questões humanas mais urgentes, e mesmo a história, presa em sua linearidade, não era mais capaz de narrar o mundo.
Nas Letras, o cenário não era diferente. Os anfiteatros da velha Sorbonne, agora vazios, atestavam a falência de um saber que apenas repetia e imitava a si mesmo. Ocupando essa brecha, o estruturalismo interessou-se por todas as formas proscritas de saber, realizou um movimento contrário ao das instituições canônicas e buscou novos modelos. Não por acaso, as grandes ciências que conduziram o movimento – a psicanálise e a antropologia – privilegiam o inconsciente, buscam o avesso do sentido manifesto, o reprimido, o inacessível da história ocidental.
O surgimento de O pensamento selvagem mudou a história das maneiras de pensar. Livro-manifesto do estruturalismo, nele Lévi-Strauss denuncia o fosso instalado na ciência ocidental, que dividiu em duas as possibilidades de ler o livro do mundo. A primeira caracteriza-se por uma estrutura de pensamento apoiada nas qualidades sensíveis, em uma “ciência do concreto”, à qual ele denomina “pensamento selvagem”.
A outra, a chamada razão iluminista, responsável pelo surgimento das ciências modernas, se pensa em termos de propriedades formais, abstratas e situa-se no plano do inteligível. Embora tivessem tudo para se completar, o divórcio entre elas cindiu também a própria concepção de humanidade. Toda a obra de Lévi-Strauss caminha no sentido de reconciliá-las.
O pensamento selvagem foi concebido como prefácio às Mitológicas, obra que reúne um dos maiores inventários de mitos da contemporaneidade. Foi antecedido por O totemismo hoje, onde Lévi-Strauss já denunciava as interpretações inadequadas que práticas e crenças das sociedades tradicionais suscitavam. Esses trabalhos reunidos dão à obra de Lévi-Strauss uma coerência interna rara em outros autores.
O livro é organizado à semelhança das ciências naturais, em particular a botânica e a zoologia, das quais Lévi-Strauss retira uma experiência tanto científica quanto estética. Trata-se de demonstrar que o pensamento selvagem – e não o pensamento dos selvagens, insiste ele – obedece a uma lógica tão exigente do ponto de vista intelectual quanto a nossa. Para dar apenas um exemplo citado no livro, se a ciência organiza o conhecimento criando sistemas classificatórios, o mesmo ocorre no pensamento mágico; afinal, pensar é classificar e “toda ordem é superior ao caos”.
Refutando autores que asseguravam que nas sociedades primitivas o conhecimento do mundo natural estava ligado a um sentido de utilidade prática, Lévi-Strauss demonstra que estas dedicam à natureza um culto desinteressado, sem função utilitária. Tudo o que existe no universo é objeto de pensamento, “é bom para pensar”. A partir daí, a tarefa que Lévi-Strauss se impõe é a de organizar, sob uma nova óptica, esse espaço comum, situado no limiar da natureza e da cultura, habitado por plantas, homens e bichos.
Curiosamente, em meio a descrições minuciosas do mundo natural estabelecidas pelos mais diversos grupos tribais, deparamos com não menos minuciosas referências a quadros e pintores, que perpassam vários séculos da história da arte. A presença da arte aí, porém, está longe de ser fortuita. Pensador de um mundo desencantado, que celebra o logos em detrimento do mytos, Lévi-Strauss compreendeu, talvez como Friedrich Nietzsche (1844-1900), que não sabemos mais pensar miticamente.
A arte, no entanto, por ser uma criação do espírito humano que alia qualidades sensíveis e inteligíveis, poderia significar o elo perdido entre a ciência e o pensamento mágico e nos reconduzir a ele. Lévi-Strauss, então, incorpora procedimentos estéticos à sua ciência. A partir daí pode-se dizer que suas incursões no terreno da arte deixam de ser mera reflexão sobre arte para ganhar uma dimensão estética própria.
A descrição desse universo mítico-estético ocupa a quase totalidade de O pensamento selvagem. Mas o último capítulo, ‘História e dialética’, volta a ganhar tons de manifesto. Ali, o fundador do estruturalismo se opõe ao criador do existencialismo, Jean-Paul Sartre (1905-1980), em polêmica que ficou famosa.
Estruturalismo versus existencialismo
Entre os dois pensadores paira a figura de Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939), que deixou marcas na cultura francesa. A partir de 1910, ao tratar em seus livros das “funções mentais nas sociedades inferiores”, seu pensamento começa a ser combatido, sobretudo quando classifica como “pré-lógica” a racionalidade das sociedades primitivas.
Pensador selvagem – e não dos selvagens –, inimigo ferrenho da concepção de Lévy-Bruhl, Lévi-Strauss a combaterá com veemência em sua obra. Não só discordará do caráter pré-lógico atribuído a essa modalidade de pensamento, como postulará uma identificação ainda mais profunda, a do homem com o animal.
Em Sartre, a perspectiva de Lévy-Bruhl é acolhida e produz efeitos, em especial em seus ensaios sobre o imaginário e a imaginação. Em O imaginário, sobretudo, identifica, na capacidade humana de produzir imagens, uma proximidade com aspectos mágicos, pré-lógicos, irracionais.
Outro ponto de discórdia entre os dois pensadores está no lugar atribuído à história e ao sujeito. Para Lévi-Strauss, ao conceber o sujeito historicamente engajado na práxis, Sartre não consegue livrar-se das ciladas do cartesianismo. O modelo levistraussiano de sujeito, ao contrário, não está em René Descartes (1596-1650), mas em Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), o primeiro a proclamar que a finalidade última das ciências humanas não é a constituição do homem, mas sua dissolução.
O lugar que o etnólogo deve conceder à história é um lugar de respeito, mas não de privilégio; um lugar a partir do qual se buscam significados, mas não onde estão depositadas as significações últimas. Tais declarações custarão a Lévi-Strauss, por mais que as desmentisse, o rótulo de pensador anti-histórico.
Os caminhos de Sartre e Lévi-Strauss são em tudo opostos. O primeiro encarna o pensador da história, do sujeito e da consciência, enquanto o outro se coloca como o pensador do mito, da dissolução do sujeito e do inconsciente. Nesse duelo de gigantes, e muito mais do que se imagina, um pensamento forjou-se em direta relação com o do outro, ainda que fundamentalmente para discordar.
Mariza Martins Furquim Werneck
Departamento de Antropologia
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Texto originalmente publicado na CH 299 (dezembro de 2012).