A vida com HIV quatro décadas depois

Departamento de Genética e Biologia Molecular
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Instituto Nacional do Câncer (INCA)
Instituto Nacional do Câncer
Departamento de Genética
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto Nacional do Câncer (INCA)

Com o diagnóstico precoce, apoio social e acesso ao tratamento gratuito e contínuo que completa 30 anos em 2026, as pessoas que vivem com HIV no Brasil podem levar uma vida plena, longa e saudável. Entretanto, alguns desafios que transcendem a dimensão biomédica permanecem: o necessário compromisso coletivo com a inclusão, o respeito e a justiça social.

CRÉDITO: ILUSTRAÇÕES RAFAELA PASCOTTO

Nos anos iniciais da década de 1980, o mundo testemunhou os primeiros registros de uma doença desconhecida que viria a ser responsável por milhões de mortes e mudaria significativamente o panorama da saúde pública mundial. Esse conjunto de sintomas provocado por uma infecção viral foi nomeado, em 1982, síndrome de imunodeficiência adquirida ou, simplesmente, Aids. 

Os primeiros casos de Aids em humanos foram descritos nos Estados Unidos, a partir do relato de jovens que apresentavam grave enfraquecimento do sistema imunológico, caracterizado majoritariamente pelo desenvolvimento de múltiplas infecções e cânceres raros. Somente dois anos após os primeiros relatos, em 1983, o vírus hoje conhecido como vírus da imunodeficiência humana (HIV, na sigla do inglês Human Immunodeficiency Virus) foi isolado e identificado como o agente responsável pelos casos.

Rapidamente, em 1982, a infecção alcançou o Brasil, com a notificação oficial dos primeiros registros de Aids na cidade de São Paulo. Em um contexto que antecede a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o aumento do número de casos e a aparente disseminação acelerada do vírus instalaram um cenário de medo generalizado.

Os primeiros anos da epidemia foram marcados pelo temor e pelo preconceito decorrentes da desinformação. Nessa época, a infecção pelo HIV foi associada a determinados grupos minorizados: homens que fazem sexo com homens, profissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis eram considerados grupos populacionais responsáveis pelos casos descritos.

Embora, com o tempo, essa ideia tenha se mostrado infundada, ela contribuiu para o estabelecimento de um estigma que perdura até os dias atuais. Campanhas de saúde e textos jornalísticos fomentaram o temor social ao reforçar conceitos errôneos quanto à transmissão do vírus e à população em risco, consolidando a estigmatização dos grupos acometidos e dificultando a elaboração de políticas de prevenção eficazes.

Campanhas de saúde e textos jornalísticos fomentaram o temor social ao reforçar conceitos errôneos quanto à transmissão do vírus e à população em risco, consolidando a estigmatização dos grupos acometidos e dificultando a elaboração de políticas de prevenção eficazes

Um arsenal de medicamentos

Antes de iniciarmos nossa revisão sobre o tratamento contra o HIV (chamado de terapia antirretroviral ou TARV), é necessário esclarecer que a Aids representa a manifestação da doença causada pela infecção pelo HIV, porém nem toda pessoa que vive com o vírus irá, necessariamente, alcançar esse estágio da condição, em que o sistema imune já está muito debilitado e incapaz de combater outras infecções.

Hoje, com o tratamento antirretroviral bem-sucedido, a pessoa só desenvolve Aids em raríssimas circunstâncias. Assim, uma distinção importante se faz no uso dos termos ‘pessoas que vivem com HIV’ e ‘pessoas em estágio clínico de Aids’, sendo o primeiro o termo regular e corretamente utilizado ao se referir a pessoas infectadas pelo vírus.

Nas últimas décadas, a TARV transformou o HIV de uma sentença de morte em uma condição crônica e gerenciável. Essa evolução, que se iniciou com a zidovudina (AZT) e culmina hoje em medicamentos de ação prolongada, como o lenacapavir, demonstra o compromisso contínuo da ciência em aprimorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV.

Aprovado em 1987, o AZT foi o primeiro medicamento usado para combater a infecção pelo HIV. Embora tenha sido um avanço significativo, sua eficácia era limitada. O vírus rapidamente desenvolvia resistência à droga, e os efeitos colaterais eram graves. A terapia com um único medicamento oferecia uma melhora temporária, por cerca de poucas semanas, mas não conseguia controlar a replicação viral em longo prazo.

O verdadeiro ponto de virada da TARV veio em 1996, com a introdução da terapia antirretroviral de alta potência (HAART), o chamado ‘coquetel anti-HIV’. A HAART, que combinava pelo menos três medicamentos de diferentes classes, atacava o vírus em múltiplas frentes (em vários pontos de seu ciclo de replicação na célula hospedeira).

Figura 1. Linha do tempo com os principais marcos históricos e clínicos da Aids no Brasil e no mundo

CRÉDITO: CEDIDA E CRIADA PELOS AUTORES

Essa abordagem não apenas reduziu as chances de resistência viral, como também diminuiu drasticamente a carga viral (quantidade de vírus circulante do sangue da pessoa) para níveis indetectáveis na maioria dos pacientes. Mesmo que o vírus conseguisse desenvolver resistência a um dos medicamentos presentes na HAART, as demais drogas garantiam a ação virucida e impediam que o vírus voltasse a se multiplicar.

Com a supressão viral, as doenças oportunistas associadas à Aids, como a pneumonia e o sarcoma de Kaposi, tornaram-se muito menos comuns. Essa fase marcou a passagem de um tratamento das complicações da Aids para uma terapia contra o próprio vírus, permitindo que as pessoas que vivem com HIV tivessem vidas mais longas e saudáveis.

Com o avanço farmacêutico, a HAART passou a ser oferecida em poucos – ou mesmo em um único comprimido – diários (comparados às 15 a 20 pílulas necessárias ao longo do dia na fase inicial da terapia combinada). Isso simplificou a posologia e melhorou a adesão ao tratamento.

A inovação mais recente na TARV foca na conveniência e na qualidade de vida. Medicamentos de ação prolongada, como os injetáveis, estão se tornando uma realidade. O lenacapavir é um exemplo notável dessa nova era. O medicamento é apresentado como injeção subcutânea que, em alguns casos, pode ser administrada apenas duas vezes por ano, mantendo a carga viral do HIV indetectável por seis meses a cada dose administrada.

Além de sua conveniência, o lenacapavir representa uma nova classe de antirretrovirais chamados inibidores do capsídeo. Em vez de alvejar enzimas virais, como a maioria dos medicamentos atuais, o lenacapavir interfere na estrutura da cápsula do vírus, impedindo-o de avançar em múltiplas etapas do seu ciclo replicativo. Essa nova abordagem é especialmente promissora para pessoas em tratamento de longa duração, muitas vezes com histórico de resistência a outras classes de medicamentos.

O Brasil é considerado uma referência mundial no tratamento do HIV desde 1996, quando foi implementada a gratuidade e o acesso universal à TARV pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Inicialmente, o tratamento não era recomendado para todas as pessoas que viviam com o vírus; apenas era indicado para aqueles que demonstravam manifestações de infecção avançada.

A partir de 2013, o tratamento foi expandido a todas as pessoas que vivem com o vírus. Essa ampliação do acesso à terapia resultou no aumento da expectativa de vida e na consequente redução do número de óbitos. Hoje, as pessoas que vivem com o HIV e apresentam sucesso terapêutico têm uma qualidade de vida comparável, em muitos aspectos, à da população geral.

Essa evolução, que se iniciou com a zidovudina (AZT) e culmina hoje em medicamentos de ação prolongada, como o lenacapavir, demonstra o compromisso contínuo da ciência em aprimorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV

A importância da abordagem integrada

O sucesso do tratamento também teve implicações nos riscos de transmissão da infecção. Em 2016, o conceito de ‘Indetectável = Intransmissível (I=I)’ ganhou força e reconhecimento e passou a ser utilizado na mobilização de campanhas preventivas. Esse conceito preconiza que uma pessoa que vive com o HIV, que faz uso da terapia antirretroviral adequadamente e mantém a carga viral indetectável, não transmite o vírus pela via sexual.

Tais avanços reforçaram a importância da adesão ao tratamento e, somados à mobilização de grupos civis, contribuíram no combate ao estigma associado à infecção. Com o crescente sucesso do tratamento, o manejo da infecção pelo HIV foi ampliado para além do controle clínico, incorporando o conceito de prevenção combinada.

Esse modelo não se limita apenas ao uso de antirretrovirais para pessoas vivendo com HIV, mas também busca reduzir a transmissão do vírus em nível populacional. Além do constante incentivo ao uso de preservativos e à realização de testagem regular, medidas adicionais foram progressivamente incorporadas às políticas públicas de saúde.

Entre elas, destacam-se a profilaxia pós-exposição (PEP), disponível no SUS desde 1999, destinada a situações de exposição de risco recente, e a profilaxia pré-exposição (PrEP), implementada em 2018, voltada para populações-chave, com maior vulnerabilidade, e que preconiza o uso de antirretrovirais antes de potenciais exposições.

Essa abordagem integrada reforça a importância de combinar métodos farmacológicos, comportamentais e estruturais, promovendo não apenas a redução das novas infecções, mas também o enfrentamento do estigma, o fortalecimento do acesso à saúde e a autonomia das pessoas em relação ao cuidado com sua própria saúde sexual.

O Brasil é considerado uma referência mundial no tratamento do HIV desde 1996, quando foi implementada a gratuidade e o acesso universal à TARV pelo Sistema Único de Saúde (SUS)

A cura é possível?

Apesar do sucesso da terapia antirretroviral em revolucionar o dia a dia das pessoas que vivem com o HIV, diversos desafios permanecem e perduram até a atualidade. Embora seja capaz de controlar a infecção e impedir a progressão para a fase de Aids, o tratamento não elimina o vírus completamente, devido à capacidade deste último de estabelecer reservatórios latentes no corpo, popularmente conhecidos como ‘santuários’.

Dessa forma, o HIV permanece ‘escondido’ no organismo apesar do uso dos medicamentos. Além disso, o tratamento requer adesão vitalícia e pode causar efeitos colaterais e toxicidade medicamentosa, fatores que dificultam a continuidade e o sucesso da terapia em longo prazo.

Frente às limitações da terapia antirretroviral, a busca por novas estratégias de combate ao HIV tornou-se alta prioridade. Em 2007, o relato de um indivíduo que permaneceu livre do vírus mesmo após a interrupção do tratamento mobilizou a comunidade científica e incentivou fortemente a busca por uma cura.

Conhecido como ‘paciente de Berlim’, Timothy Ray Brown foi a primeira pessoa a atingir a remissão da infecção após um transplante de células hematopoiéticas, realizado para o tratamento de uma leucemia mieloide aguda. As células transplantadas eram provenientes de um doador que carregava uma mutação genética rara que confere resistência natural à algumas variantes do HIV e, como resultado, Timothy manteve-se livre da infecção até os seus últimos dias de vida.

Posteriormente, foram descritos outros relatos de pacientes submetidos a procedimentos semelhantes. Entretanto, a despeito do êxito desses casos, tal estratégia não representa uma maneira viável de curar toda a população que vive com o HIV, uma vez que o transplante de células hematopoiéticas é um procedimento complexo e arriscado que, no contexto desses pacientes, foi utilizado exclusivamente para tratar neoplasias hematológicas.

O tratamento requer adesão vitalícia e pode causar efeitos colaterais e toxicidade medicamentosa, fatores que dificultam a continuidade e o sucesso da terapia em longo prazo

HIV e estigma

A história da infecção pelo HIV revela marcas sociais profundas e uma constante luta por visibilidade e aceitação. As representações históricas da Aids denunciam a necessidade de formas alternativas de cuidado, que ultrapassem a dimensão biomédica e englobem também os aspectos psicossociais das pessoas vivendo com HIV.

Enquanto a comunidade científica busca novas abordagens terapêuticas promissoras e pavimenta o campo em direção a uma cura amplamente acessível, a população que vive com o vírus persiste frente aos desafios impostos pela estigmatização. Segundo o programa conjunto das Nações Unidas para HIV/Aids (UNAids), o estigma e a discriminação figuram entre os principais obstáculos para prevenção, tratamento e acesso a cuidados em relação ao HIV.

Dados do índice de estigma 2025 da UNAids mostram que 52,9% das pessoas que vivem com HIV no Brasil relataram ter sofrido algum tipo de discriminação em algum momento de suas vidas. É importante destacar que o estigma ainda está presente em espaços cotidianos, que deveriam ser de acolhimento, como serviços de saúde, ambientes de trabalho e de convívio com familiares e amigos.

Além disso, situações discriminatórias vivenciadas por pessoas que vivem com HIV impactam diretamente em tomadas de decisões importantes, como testagem e procura por serviços de saúde. Essas observações evidenciam que o estigma permanece como uma barreira real ao cuidado, à prevenção e à qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV.

Ao longo dos anos, a arte e a cultura apresentaram um papel central no enfrentamento do estigma e na conscientização e informação da população sobre HIV e Aids. Nos Estados Unidos, peças teatrais, filmes e músicas deram voz às vítimas e ampliaram a conscientização, com destaque para obras como Philadelphia, Clube de Compras Dallas e Milk.

No Brasil, figuras públicas como Cazuza, que denunciaram o preconceito e o abandono sofrido por pessoas vivendo com HIV, tornaram-se símbolo de resistência e marco na luta contra HIV/Aids. Ao longo da última década, tem-se observado um movimento cada vez mais expressivo de pessoas vivendo com HIV que escolheram romper o silêncio. Esse processo de transformação tem encontrado nas redes sociais um espaço privilegiado de visibilidade e troca.

Por meio dessas plataformas, muitas dessas pessoas optam por abrir mão do sigilo sorológico garantido por lei e, ao fazê-lo, assumem um papel ativo na sociedade: promovem debates, democratizam o acesso à informação de qualidade, enfrentam a desinformação e ajudam a desconstruir preconceitos. Mais do que histórias individuais, essas vozes coletivas transformam a percepção social do HIV, fortalecem a luta contra o estigma e reafirmam o direito de viver com dignidade e cidadania.

Com diagnóstico precoce, apoio social e acesso ao tratamento gratuito e contínuo oferecido pelo SUS, as pessoas que vivem com HIV no país podem levar uma vida plena, longa e saudável. Hoje, o uso adequado da terapia antirretroviral permite alcançar a indetectabilidade viral, garantindo qualidade de vida e eliminando o risco de transmissão do vírus pela via sexual.

Além disso, o fortalecimento das redes de apoio, a redução do estigma e o incentivo à informação e à prevenção são fundamentais para que cada pessoa exerça plenamente seus direitos, viva com dignidade e seja protagonista de sua própria história. Dessa forma, o enfrentamento do HIV transcende a dimensão biomédica, representando também um compromisso coletivo com a inclusão, o respeito e a justiça social.

As representações históricas da Aids denunciam a necessidade de formas alternativas de cuidado, que ultrapassem a dimensão biomédica e englobem também os aspectos psicossociais das pessoas vivendo com HIV

UNAids – Índice de Estigma 2025 – Sumário Executivo. Acessado em 31/08/2025: https://unAids.org.br/wp-content/uploads/2025/05/VF-ARTE_Stigma-Index-2025-UNAids-Versao-Online.pdf

UNAids Terminology Guidance 2024; acessado em 31/08/2025:  https://www.unAids.org/sites/default/files/media_asset/2024-terminology-guidelines_en.pdf

Pesquisa resgata a história pública e a memória da luta contra o estigma do HIV e da Aids, acessado 31/08/2025, https://www.uff.br/27-11-2024/pesquisa-resgata-a-historia-publica-e-a-memoria-da-luta-contra-o-estigma-do-hiv-e-da-Aids/

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