Informar ao paciente um erro médico é a decisão mais correta tanto do ponto de vista ético quanto prático e ajuda a prevenir mais erros. Essa é a mensagem do médico norte-americano Jay Marion, do Centro de Ciências de Saúde da Universidade Estadual da Louisiana, em Shreveport (Estados Unidos).
Em outubro último, Marion ministrou, no Rio de Janeiro, a palestra ‘Revelação de erros médicos’ na Clínica São Vicente. Ele mostrou estudos que indicam que 20% dos pacientes não processariam o médico se este lhes revelasse um erro moderado, contra 12% que o fariam. Além disso, 24% dos familiares só entrariam na Justiça se achassem que houve acobertamento do erro, contra 19% que o fariam por vingança ou para impedir que outros sofressem o mesmo destino.
Apesar desses números, muitos médicos ainda resistem à ideia de comunicar erros aos pacientes. Embora haja consenso de que erros que resultam em dano físico ou psicológico têm que ser revelados ao paciente, não se sabe a frequência real em que isso acontece. Segundo Marion, nos Estados Unidos, cerca de 100 mil mortes por ano são atribuídas a causas evitáveis que resultam de erro médico, as quais, somadas a problemas menores, geram um prejuízo anual de US$ 9 bilhões. Mais: acredita-se que a subnotificação desses casos esteja entre 50% e 96%.
“Fora a questão dos processos judiciais, há a preocupação de que a informação cause mais malefício ao paciente do que benefício, em especial nos casos em que o erro foi corrigido a tempo, não houve dano ao paciente ou ele foi mínimo”, contou Marion. “Mas, como quem define o que é dano costuma ser o responsável pelo erro, seu julgamento nesses casos pode ficar comprometido”, acrescentou. Além disso, continuou, só porque não houve um problema fisiológico de longa duração não quer dizer que o paciente não foi prejudicado. Por exemplo, erros que fazem um indivíduo perder um dia de trabalho ou não estar com sua família podem causar desconforto desnecessário ou levar a prejuízos econômicos.
Ascensão da ‘verdadeza’
Decidir se deve ou não revelar um determinado erro é um dilema ético para o médico que, idealmente, deveria ser resolvido com base em uma análise racional da situação. Para Marion, o principialismo, modelo baseado em quatro princípios éticos – autonomia, beneficência, não maleficência e justiça – seria o melhor caminho para a solução desse desafio e teria servido à comunidade médica por muitos anos. No entanto, ele vê a ascensão de uma abordagem subjetiva e arriscada para essa tomada de decisão, que pode levar a situações de ‘o fim justifica os meios’.
Marion usou uma palavra cunhada pelo comediante norte-americano Stephen Colbert para descrever o fenômeno: truthiness (algo como ‘verdadeza’). Significa uma verdade não baseada em fatos, mas em sentimentos; acreditar naquilo que se deseja, em vez do que se sabe ser verdade. “Quando se avalia uma informação com o intuito de revelá-la, usamos o pensamento racional e nossa intuição, mas esta sofre influência das nossas experiências, preconceitos etc., e sua interferência pode transformar a verdade em ‘verdadeza’”, observa Marion.
Para ele, essa ‘verdadeza’, combinada com o sentimento de que algo deve ser feito, pode interferir com os princípios éticos do médico e levar a uma manipulação da sua honestidade, gerando evidência que não existe para dar suporte a sua decisão de revelar ou não o erro. “O médico se convence de que sabe qual seria a reação do paciente ou que a informação teria um efeito negativo na sua saúde. Mas nada disso é baseado em fatos”, explica Marion.
O lado prático
Como mostrado pelos números no início deste texto, pacientes e familiares tendem a ter uma reação mais positiva quando são informados de um erro. Ao contrário do que se pensa, a confiança das pessoas aumenta em relação ao sistema quando isso acontece. Marion cita estudos que mostram que hospitais ou serviços que têm uma política de revelar erros gastam menos com indenizações financeiras. “É o caso do Departamento de Assuntos ligados aos Veteranos do governo norte-americano, que já economizou centenas de milhares de dólares e tem como política oficial informar todos os erros – mesmo os que não sejam óbvios para o paciente”, informou o médico.
O ganho financeiro não é a única vantagem prática apontada por Marion, que destaca a utilidade desses relatos para aumentar a segurança da prática médica. “Embora os erros médicos sejam cometidos por pessoas – devido à negligência, incompetência ou simples falhas –, o ambiente de trabalho e a própria organização podem criar um sistema que ‘conspira’ para induzir esses erros”, observou o médico. Segundo ele, políticas de gestão, hierarquia organizacional, excesso de carga horária, fadiga, equipamentos defeituosos e outros são fatores que contribuem para a ocorrência de erros.
Reportar essas falhas, mesmo se não causam dano aos pacientes, fornece informações necessárias para prevenir erros danosos, permitindo que a instituição corrija o sistema. Marion deu como exemplo um caso sério que ocorreu há vários anos no hospital em que trabalhava (ver ‘Quando tudo dá errado’) e que resultou na morte de uma paciente devido a uma troca de quimioterápicos. “Após essa tragédia, identificamos os pontos que haviam permitido que isso acontecesse e criamos procedimentos para evitar que se repetissem”, explicou.
Marion elencou algumas ferramentas para diminuir esses problemas sistêmicos, como o uso de uma lista de checagem similar à usada em aviões, onde o piloto testa todos os sistemas essenciais antes de decolar. Outro mecanismo, também inspirado pela aviação, estimula que os profissionais reportem erros que foram corrigidos a tempo, garantindo que não serão punidos por estes.
Marion ressaltou ainda que a comunicação do erro ao paciente também deve ser feita de maneira rápida, com linguagem clara e concisa, definindo o pior e o melhor cenário, incluindo um pedido de desculpas e compensação financeira, caso o erro tenha acarretado custos – por exemplo, um exame desnecessário que o plano de saúde se recusa a reembolsar. “De modo algum o médico deve culpar o sistema ou os colegas, diluir seu pedido de desculpas com um ‘mas’ ou tentar dividir a culpa pelo erro com o paciente”, concluiu.
Um exemplo de problemas sistêmicos que induzem ao erro médico ocorreu há alguns anos no hospital onde Marion trabalha. Um médico novo estava encarregado de realizar a quimioterapia de uma paciente com linfoma e requisitou à farmácia a droga metotrexato para injeção intratecal, ou seja, diretamente no fluido espinhal. O farmacêutico de plantão enviou o quimioterápico junto com outras drogas requisitadas para aquele setor. A enfermeira que recebeu a entrega passou a seringa para o médico sem checá-la cuidadosamente. Como a etiqueta estava dobrada, o médico não leu o aviso inteiro, que dizia ‘não usar via intratecal’, mas apenas as últimas palavras, e injetou a droga na paciente.
Logo depois, foi interpelado pela mesma enfermeira sobre se tinha injetado a droga correta. Ao investigarem a lata de rejeitos, viram que o médico havia na verdade injetado o quimioterápico vincristina, o qual sob hipótese alguma deve ser administrado por via intratecal, pois é extremamente tóxico. “Não havia nada que pudesse ser feito. Tivemos que informar à paciente que ela tinha um linfoma curável, mas que devido a esse erro morreria em uma semana – e de maneira agonizante, pois a vincristina destruiria progressivamente seus neurônios”, revelou Marion.
Para ele, houve uma série de problemas sistêmicos que levaram ao erro, começando pelo fato de o farmacêutico ter enviado a droga a ser injetada via intratecal junto com as outras. “Hoje, esse quimioterápico é enviado sozinho e os outros medicamentos só são liberados quando a seringa retorna à farmácia vazia”, informou.
Outros erros foram a enfermeira também não ter checado mais cuidadosamente a droga que estava passando ao médico e o chefe do plantão ter dado a tarefa de administrar o metotrexato a um médico novo, que ainda não estava familiarizado com os procedimentos daquele hospital. “A paciente ficou muito triste, mas agradeceu por termos revelado o erro. Ela até abraçou o médico quando o viu chorando. Ele ficou tão arrasado com o acontecido que abandonou a oncologia”, relatou Marion.
Texto originalmente publicado na CH 299 (dezembro de 2012).