Em 25 de fevereiro de 2012, no início da madrugada, um incêndio de grandes proporções destruiu quase inteiramente a estação de pesquisas do Brasil na Antártida – a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF). Os primeiros módulos dessa estação foram inaugurados há 30 anos, e aos poucos o Brasil ocupou em definitivo essa área na enseada Martell, da baía do Almirantado, na ilha Rei George, a maior do arquipélago das Shetland do Sul. A área abrigava anteriormente uma estação do Serviço Geológico da Inglaterra.
Ao longo das três últimas décadas, o Programa Antártico Brasileiro (Proantar) se transformou na maior e mais longa operação anual da Marinha do Brasil. Esse programa de logística complexa, que conta ainda com o apoio da Força Aérea Brasileira, permite a realização de pesquisas científicas de alta qualidade, garantindo ao Brasil uma posição importante entre os países do Tratado da Antártida, do qual é signatário desde 1975.
No momento, está em preparação a 31ª Operação Antártica Brasileira, e o governo já anunciou a liberação de R$ 40 milhões para remoção de escombros e reconstrução da EACF. Este texto não pretende se concentrar nas causas do incêndio, mas em suas consequências para o estágio atual das pesquisas científicas e para o futuro da presença brasileira na Antártida.
Continente protegido
Por força do tratado internacional, a Antártida é considerada um continente onde pretensões territoriais estão ‘congeladas’. Isso implica que qualquer exploração comercial de seus recursos naturais também está proibida.
Essa proibição vale para o continente, mas não para os oceanos que o circundam. Nestes, a exploração ainda é grande, em especial por navios pesqueiros – inclusive os que capturam baleias. Vale lembrar que, no século 19, quando não havia produção de energia elétrica, a humanidade dependia basicamente do óleo de baleia para a iluminação pública, o que impulsionava a caça desses grandes cetáceos.
No final daquele século e no início do século 20, a captura de baleias foi intensa na região ao redor da Antártida, resultando na drástica redução das populações de muitas espécies – entre elas a baleia-azul, maior animal existente hoje no planeta. Por conta dessa devastação, a paisagem atual das ilhas subantárticas é assustadora: suas praias estão coalhadas de ossos de baleias, resquícios da época de quase extermínio desses animais.
O Tratado da Antártida determina o uso pacífico do continente gelado e permite a realização ali de pesquisas científicas. Hoje, cerca de 30 países desenvolvem estudos nesse território, apesar das condições inóspitas. As pesquisas antárticas têm grande importância: ajudam a entender a dinâmica do clima global, da atmosfera e das correntes oceânicas.
Hoje, por exemplo, os cientistas buscam entender como as correntes marinhas e atmosféricas levam poluentes persistentes para essas latitudes e que processos estão envolvidos na formação das ‘frentes frias’ que fazem cair a temperatura na América do Sul, inclusive no Brasil, chegando a alterar o clima até no sul da Amazônia.
Incêndios como o que destruiu a EACF e tirou a vida de dois profissionais da Marinha do Brasil servem, antes de qualquer coisa, como um aprendizado. Já ocorreram acidentes como este em estações de outros países. O que deu errado em nossa concepção de uma estação na região talvez tenha sido o adensamento das instalações.
Estas foram construídas ao longo dos anos e recobertas com um teto único, para que as áreas de vivência e de trabalho pudessem ser acessadas sem exposição ao frio excessivo. A estação brasileira, operada o ano inteiro, era confortável: tinha biblioteca, cozinha, refeitório, bons dormitórios, ampla sala de estar e facilidade de comunicação. Era um pedaço do Brasil próximo ao círculo polar.
Por isso mesmo, alguns problemas inerentes ao país também eram observados ali com relativa frequência. O sistema de tratamento anaeróbico de esgoto já dava sinais de estar no limite de sua capacidade de operação (a estação recebia 60 pessoas no verão) e a geração de lixo (incinerado na própria EACF) também era grande. A temperatura interna, muitas vezes, era mais alta do que a necessária para agradar os ‘friorentos’.
Pesquisas mantidas
A expectativa agora é construir uma estação nova e mais moderna, também mais funcional e mais amigável com o ambiente, tanto no tratamento do lixo e do esgoto gerados quanto nos gastos de combustíveis derivados do petróleo. Aliás, uma das grandes perdas no incêndio foi o protótipo de gerador a etanol, desenvolvido em parceria da Companhia Vale do Rio Doce, da Petrobras e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, para reduzir a emissão de gases.
Os estudos sobre a biologia de micro-organismos sofreram grande baque com a perda de bancos de amostras mantidos na estação. Também houve perdas significativas em outras pesquisas biológicas, além das geológicas e de contaminação ambiental. Não foram atingidos pelo fogo os alojamentos de pessoal, os laboratórios de meteorologia, química e de estudo da alta atmosfera, os tanques de combustíveis e o heliporto. Os pesquisadores da Operantar, alguns com 10 anos ou mais de atuação no programa e outros em suas primeiras expedições à estação, continuam abalados por terem vivenciado o incêndio.
Mas há boas notícias: enquanto a nova estação não for projetada e implantada (o que deve acontecer em prazo de quatro a oito anos), a pesquisa científica não será interrompida. Estão sendo instalados na área do heliporto módulos do tipo contêiner para abrigar, de início, o grupo de operações que desmontará a antiga estação e retirará os escombros. As pesquisas foram deslocadas para acampamentos em áreas próximas, auxiliadas pelos navios de apoio oceanográfico brasileiros.
Após a reconstrução, as novas instalações permitirão estudos científicos com ainda maior qualidade e rigor e facilitarão a meta de minimizar os impactos ecológicos da estação brasileira. O Proantar – coordenado pela Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm), em conjunto com os ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (Coordenação para Mar e Antártida) e do Meio Ambiente, e do qual participam a Força Aérea Brasileira, universidades e centros de pesquisa – seguirá adiante, revigorado, para o progresso da ciência no Brasil.
João Paulo M. Torres
Larissa Cunha
Adriana Rodrigues de Lira Pessoa
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Erli Costa
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Associação de Pesquisadores Polares em Início de Carreira
Begoña Jimenez
Instituto de Química Orgânica Geral
Conselho Superior de Investigações Científicas (Espanha)
Texto originalmente publicado na CH 299 (dezembro de 2012).