Ansiedade, irritabilidade e tremores. A síndrome de abstinência de álcool é um desafio para os dependentes que querem se livrar da substância. Em estudo com camundongos, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) identificaram mudanças na bioquímica cerebral que podem auxiliar no desenvolvimento de terapias para amenizar a síndrome.
Durante 21 dias, a equipe aplicou injeções diárias de álcool nos roedores e selecionou aqueles que, nesse período, apresentaram atividade locomotora aumentada. “O aumento da locomoção é típica de animais mais sensíveis ao álcool e que provavelmente apresentarão os sintomas de abstinência ao serem privados do seu consumo”, explica o biomédico Renato Filev, coautor do estudo.
Após a última injeção de álcool, os animais permaneceram cinco dias privados da substância. Os cérebros dos roedores em abstinência, quando comparados aos de um grupo de camundongos que se mostraram resistentes ao efeito sensibilizador do álcool e também dos animais que nunca consumiram a droga, tiveram um aumento de receptores canabinoides tipo 1 (CB1). Responsáveis pela modulação de vários tipos de sinapses, esses receptores se ligam aos endocanabinoides, substâncias produzidas pelo corpo humano. Os receptores interagem ainda com o tetrahidrocanabinol (THC), composto responsável pelos efeitos da maconha.
Para confirmar a relação entre abstinência de álcool e o sistema canabinoide, a equipe voltou a injetar etanol nos camundongos logo após o período de privação. “Uma nova dose da droga normalizou os níveis de receptor canabinoide, o que nos leva a crer que esse sistema está intimamente ligado aos efeitos apresentados durante a abstinência”, acrescenta Filev.
Custo-benefício
Embora a pesquisa mostre claramente uma relação entre o aumento de receptores canabinoides e a síndrome de abstinência alcoólica, ainda não é possível saber se o sistema endocanabinoide é responsável por seus sintomas. “Não sabemos se o aumento desses receptores no cérebro provoca os efeitos da abstinência ou se esse aumento ocorre justamente para conter os efeitos deletérios da ausência do álcool no organismo”, explica o biomédico.
Filev destaca que, devido à importância do sistema endocanabinoide na modulação de ligações entre neurônios, novos estudos precisam ser feitos para compreender se esse sistema deve ser inibido ou estimulado durante a abstinência. “Existem pesquisas que apontam, por exemplo, para o uso da maconha como possível substituto para os alcoolistas”, diz. “Utilizar uma substância sabidamente menos nociva que o álcool, mesmo que provoque efeitos colaterais, alinha-se às estratégias de redução de danos para as drogas.”
O pesquisador acredita que, se o aumento na expressão de CB1 atuar nos efeitos nocivos da privação do álcool, a própria maconha poderia servir como terapia. “Vejo a chance de o indivíduo se tornar dependente da maconha com um risco menor em comparação aos danos muito mais deletérios provocados pelo abuso do álcool”, opina. “Claro que, ao ingressar nessa terapia, é preciso um acompanhamento dos efeitos colaterais e um controle do possível abuso do medicamento.”
Álcool e outras drogas
A farmacologista Rosana Camarini, da Universidade de São Paulo (USP), especialista em dependência de drogas, tem uma visão “mais cautelosa”. Camarini lembra que pesquisas desenvolvidas na última década mostram que o sistema endocanabinoide pode ter influência na dependência de álcool. “O rimonabant, por exemplo, uma substância que bloqueia receptores canabinoides tipo 1 (CB1), diminui o consumo de álcool em alguns modelos animais, enquanto a ativação desses receptores promove a necessidade de ingestão de álcool”, explica.
Camarini acrescenta que, ainda que adaptações do sistema endocanabinoide possam balancear os efeitos da abstinência de álcool, essa relação é pouco específica. “Alguns estudos sugerem que fármacos capazes de bloquear o CB1 também reduzem o consumo de substâncias naturais que podem causar compulsão, como açúcar e chocolate, e de outras drogas de abuso, como nicotina, cocaína e heroína”, completa.
Mariana Rocha
Especial para Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 307 (setembro de 2013).