Discurso inaugural da ciência moderna

O filósofo inglês Francis Bacon

Publicado em 1605, Two books of the proficience and advancement of learning, divine and humane , do filósofo e político inglês Francis Bacon (1561-1626), estabelecia as bases para uma reforma radical do conhecimento, visando o progresso social. Apesar da importância dessa obra, que mapeia o estado da ciência da época e aponta obstáculos a serem removidos para garantir o seu avanço, ela nunca foi traduzida para o português, língua em que ficou conhecida como O avanço do conhecimento . Nesse trabalho seminal, Bacon mostra que o poder de intervenção na natureza para explorar suas possibilidades é o melhor caminho para o desenvolvimento.
 
Na época do lançamento de Advancement of learning , Francis Bacon já tinha alguma fama e poder. Estava então com 44 anos, era um dos conselheiros do rei Carlos II, da Inglaterra, e já havia publicado seus Ensaios , uma reflexão sobre os costumes da época, e vários escritos jurídicos e políticos. Embora tenha entrado para história como um dos pais da ciência moderna, Bacon foi muito mais um mentor, articulador e promotor de um novo padrão de conhecimento do que propriamente um cientista. Sua carreira política sempre o manteve afastado da prática experimental que idealizou como uma das condições para o progresso da ciência. Mas, a seu ver, esse progresso não dependia apenas da adoção de métodos corretos. Era necessária uma reformulação geral da visão do que seria o conhecimento, a natureza e o papel da sociedade e do Estado na promoção do saber.
 
Embora o nome do filósofo esteja associado ao método indutivo e experimental, detalhado em seu O novo órganon , de 1620, Bacon escreveu vários trabalhos sobre a necessidade de mudança de perspectiva intelectual e sobre as restrições culturais a serem vencidas. Vale lembrar que àquela época não se concebia o conhecimento como algo que progredisse com o tempo. A idéia básica era a de que o que tinha para ser conhecido já havia sido escrito pelos autores clássicos da Antigüidade (Platão, Aristóteles, Hipócrates, Galeno, entre outros). Bacon é um dos articuladores da noção de progresso que caracteriza a modernidade ocidental. Baseado na história do desenvolvimento técnico, ele defendeu a idéia de que o avanço do conhecimento científico depende do desenvolvimento de instrumentos e da conjunção de esforços e colaboração de diferentes grupos de trabalho.
 

Frontispício de O avanço do conhecimento

Em um paralelo com as viagens de descoberta do Novo Mundo, ele argumenta que seria uma desgraça para a humanidade se ela ficasse restrita ao conhecimento dos antigos, se a descoberta de novos continentes não fosse acompanhada de uma expansão do mundo intelectual. Não é, pois, por outro motivo que a capa de várias edições de Advancement of learning estampa a imagem de uma caravela se lançando ao mar aberto, indo além dos limites conhecidos, simbolizando a busca de novas perspectivas.

 
Nesse livro Bacon mapeia o estado do conhecimento da época, apontando as barreiras e algumas formas de removê-las. A seu ver, um dos principais obstáculos era a função tradicional do conhecimento: contemplação e elevação espiritual. Outro, o conformismo com as limitações da condição humana. Para Bacon, conhecer implicava alcançar melhores condições de vida para a sociedade. Em outras palavras, o inconformismo com as circunstâncias de então levaria a sociedade a superar obstáculos, partindo do desenvolvimento das artes de manipular a natureza. O alvo do conhecimento deveria ser o poder de intervenção na natureza para explorar possibilidades de uso ainda não conhecidas.
 
Outra dificuldade diagnosticada era a falta de uma linguagem clara que facilitasse o entendimento comum e métodos experimentais que permitissem checar e corrigir os erros de nossas projeções. A padronização de medidas e a objetividade da linguagem eram vitais para a circulação de informações e a colaboração coletiva.
 
Muitas dessas questões não eram novas, mas foram rearticuladas em sua obra, que se tornou uma espécie de discurso inaugural da ciência moderna. O sucesso dessa nova forma de conhecimento dependia também da neutralização de seus opositores (religiosos, políticos, filósofos tradicionais etc.), que, na avaliação de Bacon, tinham disseminado o descrédito sobre as possibilidades cognitivas.
 
As palavras e as obras
É notável nos escritos de Bacon sua habilidade para articular idéias e desenvolver argumentos que ajudaram a vencer barreiras culturais. Um exemplo curioso de estratégia adotada para reduzir a preponderância que a teologia tinha na cultura da época é a defesa da ciência como atividade sagrada. Isso não significava mistura com a religião. Pelo contrário, Bacon procurou separar os campos e garantir um amplo terreno para o desenvolvimento da ciência. O argumento que ele explorou foi o da distinção entre o livro das palavras de Deus (a Bíblia ) e o livro de suas obras (a criação da natureza). A escritura revela a vontade de Deus; o livro da natureza, seu poder.
 
O estudo da natureza, embora tenha como finalidade a salvação da humanidade, nada teria a dizer acerca da essência de Deus ou de sua vontade. Mas a investigação científica da natureza é apresentada como um dever religioso, no qual os homens refletem e estendem o trabalho divino, honrando o criador. Nessa perspectiva, a atividade científica poderia se tornar a melhor atitude religiosa desde que compreendesse seus limites e deixasse à fé o que à fé pertence, ou seja, desde que abandonasse as especulações sobre as palavras de Deus e se dedicasse à investigação das coisas naturais por Ele criadas, sem qualquer injunção de argumentos finalistas ou de intervenção sobrenatural.
 
Em seus escritos, Bacon contrasta a utilidade e o progresso do conhecimento técnico com a inutilidade e estagnação das discussões filosóficas tradicionais. Ele propõe uma conjunção da filosofia com a técnica, de forma que a especulação e a abstração filosófica viessem ajudar o trabalho técnico e vice-versa, pois nessa confluência todos sairiam ganhando. A humanidade como um todo se beneficiaria, sobretudo a sociedade que desenvolvesse esse tipo de conhecimento. Por isso Bacon tentou convencer o rei e seus súditos de que esse era um assunto de interesse nacional, inaugurando a idéia de que o Estado deveria financiar a pesquisa e reformar as instituições de ensino.
 
Advancement of learning , cujo quarto centenário de publicação estamos celebrando, foi dedicado ao rei, que se orgulhava de seus interesses intelectuais, e reforçou o prestígio político de Bacon. Alguns anos depois, em 1618, ele seria proclamado chanceler-geral da Inglaterra. Sua projeção certamente ajudou a promover e a difundir suas idéias, mas não a ponto de serem postas em prática naqueles anos. A criação da primeira academia de ciências – a Royal Society – só ocorreria em 1660, sem financiamento estatal. Mas Bacon seria homenageado como seu patrono.
 
Embora seja um dos eixos do programa baconiano de reforma do conhecimento, que foi retomado, retocado e expandido enquanto Bacon viveu, o livro Advancement of learning nunca foi traduzido para o português. Mas quatro outras obras do autor o foram. Ensaios , Sabedoria dos antigos , A nova Atlântida e O novo órganon têm boas traduções e são facilmente encontráveis em bibliotecas, livrarias e na internet.  Em O novo órganon o leitor interessado poderá tomar conhecimento das idéias centrais de Bacon sobre ciência, apresentadas em um estilo conciso e requintado que o consagrou como um dos grandes escritores da língua inglesa.

Bernardo Jefferson Oliveira*
Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Minas Gerais

*Autor da obra Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002).

 

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