“Você se cuide, quando atravessar a Alemanha, com a verdade debaixo do casaco.” Essa é uma das falas finais do físico e astrônomo italiano Galileu Galilei (1564-1642) na peça Vida de Galileu, de Bertold Brecht. Nela, o dramaturgo alemão (1898-1956) emprega o fato histórico de que o livro Discursos e demonstrações matemáticas em torno de duas novas ciências – a tal ‘verdade’ citada acima – foi contrabandeado para a Holanda e publicado lá ainda em 1638.

Relendo trechos da peça com alunos, em um curso de história da física, notei que minha percepção sobre essa obra de Brecht mudou bastante desde quando participei de uma leitura dramática dela no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no início da década de 1980. À época, final da ditadura no Brasil, Galileu representava o intelectual progressista que lutava contra um sistema opressivo.

Em realidade, a peça tem três versões distintas. A primeira foi escrita quando Brecht, fugindo do nazismo, exilou-se na Dinamarca, em 1933. Lá, teve contato com físicos que trabalhavam com Niels Bohr (1885-1962), Nobel de 1922. Essa primeira versão é uma defesa liberal da liberdade contra a tirania. A penúltima cena traz a abjuração de Galileu frente à Inquisição. Abjurar parece ser uma decisão sensata, pois isso permitiria a Galileu finalizar algo importante: seus Discursos.

Mas a explosão das bombas nucleares no Japão, em 1945, e o desenvolvimento das bombas termonucleares levaram Brecht a mudar o eixo da peça para a defesa de uma concepção social da ciência contra a visão anterior, de que a verdade é um fim em si mesma. Brecht, à época, morava nos Estados Unidos e acompanhava os dilemas éticos dos físicos e suas criações de alto potencial destrutivo. Em um pronunciamento típico do período, o norte-americano Ernest Lawrence (1901-1958), Nobel de 1939, disse que “era um físico e que nunca desistira de avançar nos seus conhecimentos, mesmo naqueles em que a física o obrigara a conhecer o preço do pecado”.

Na primeira versão, a penúltima cena tem um título  longo: ‘1633-1642. Prisioneiro da Inquisição, Galileu prossegue até a sua morte [com] os seus trabalhos científicos. Fraudulentamente, consegue fazer sair da Itália as suas obras principais’. Na versão final (terceira), o título foi reduzido: ‘1633-1642.  Galileu continua um prisioneiro da inquisição até sua morte’. Podemos notar nessa redução uma mudança significativa na mensagem central da peça.

O Galileu da versão final é cáustico, desencantado e amargo. Nas indicações que deu para a encenação da última versão, Brecht insistia que “Galileu fosse apresentado  como um criminoso social”. Mas acrescentava: “Eis uma das grandes dificuldades:  fazer sobressair o elemento criminoso da personagem do herói. Apesar de tudo, é um herói e, apesar de tudo, torna-se um criminoso”.

A exemplo de outras grandes peças históricas – como Santa Joana, do irlandês Bernard Shaw (1856-1950), e As bruxas de Salem, do norte-americano Arthur Miller (1915-2005) –, Vida de Galileu é basicamente uma discussão de questões relevantes do tempo de Brecht. E isso foi explicitado claramente por ele: “A era atômica teve seu debut em Hiroshima no meio do nosso trabalho.  Da noite para o dia a biografia do fundador do novo sistema da física apresentava uma nova leitura”.

Sem minimizar as questões cruciais levantadas na peça sobre as relações entre a ciência e a sociedade, sou dominado pela minha própria imagem do final da vida de Galileu: quase cego e abatido pela morte de sua filha Virgínia (1600-1634), ele completa os Discursos, que fundam a ciência da dinâmica e dos materiais, abrindo, assim, no meio de tanta adversidade, o caminho para a engenharia e ciência modernas.

 

João Torres de Mello Neto
Instituto de Física
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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