Uma das expressões públicas mais eloquentes das últimas décadas de política brasileira foi proferida por Fernando Henrique Cardoso, na ocasião em que exerceu a presidência do país. Ao referir-se à sempre áspera negociação com sua base parlamentar, de persuasão republicana um tanto heterodoxa, e à necessidade imperiosa de cuidar de seus apetites, o então presidente saiu-se com esta: “não se governa o Brasil sem a participação do atraso”. Juízo grave e que excede as agruras da conjuntura política imediata. São claros os termos da enunciação: é de uma suposta característica inerente ao Brasil que se trata, e não apenas de dificuldade circunstancial.
Com efeito, se procedêssemos à arqueologia política nacional, não seria difícil encontrar momentos nos quais presidentes autoimbuídos de aura de modernidade e altruísmo lamentam ter que interagir com Congressos, oligarquias e políticos egoístas e atrasados. Desde a presidência de Campos Sales (1898-1902), a literatura a respeito é de espantosa fertilidade.
O termo atraso comparece à sentença não como ‘adjetivo’, mas – o que talvez seja mais grave – como ‘substantivo’. Se adjetivo fosse, o termo revelaria uma característica epidérmica dos agentes, tão variável quanto podem ser os seus emissores. Matéria de opinião, por natureza mutante e incapaz de abrigar foros de verdade. Já como substantivo, e dotado de evidente retaguarda sociológica, o termo atraso indica uma característica inerente ao sujeito. Revela, portanto, um lastro resiliente, colado à pele e independente de adjetivos de circunstância.
Há um modo leve de descrever os hábitos do atraso na atividade política. Ele está condensado na palavra ‘fisiologismo’, que designa o potencial de venalidade incrustado no exercício dos mandatos políticos. Trocando em miúdos, a assim chamada classe política estaria à disposição dos governos que, para cumprir seus patrióticos programas, seriam obrigados a barganhas por apoio parlamentar. A depender do que se paga, obtém-se o que se quer. Coisa que os analistas e políticos norte-americanos preferem designar pela edificante expressão pork-barrel (barrica de porco).
Há, contudo, algo ainda mais grave na dimensão substantiva do atraso. O atraso não é apenas uma prática de captura de patrimônio político ou pessoal. Ele encerra também uma agenda própria que impõe ao país uma cultura política regressiva, na direção da retaguarda do processo civilizador. Seu programa, por assim dizer, está posto de modo claro pelo que se convencionou designar como ‘bancada BBB’ – Bíblia, bala e boi –, que abriga uma pesada agenda obscurantista, em tramitação no Congresso Nacional e nas gavetas do Poder Executivo.
Duas recentes ‘inovações’ merecem atenção: as mudanças temerárias na gestão da política de drogas e dos direitos das mulheres, ocorridas no início do consulado interino e executadas, respectivamente, pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, ambas ligadas ao recém-designado Ministério da Justiça e da Cidadania. Seus novos titulares indicaram, à partida, disposição de contrariar avanços duramente construídos nas duas áreas, ao propugnar pelo endurecimento da política de drogas, com a retomada de uma perspectiva punitiva, e pela restrição aos direitos reprodutivos das mulheres.
Vale lembrar o quanto do avanço civilizatório nas duas áreas dependeu do trabalho executado pela comunidade científica brasileira. Hoje possuímos conhecimento sistemático tanto sobre efeitos químicos do uso de drogas quanto sobre o amplo leque de políticas aplicáveis – desde a simples despenalização de usuários até a legalização plena. Da mesma forma, o debate público a respeito dos direitos das mulheres excedeu o campo necessário da militância e beneficiou-se de pesquisa sistemática sobre a violência doméstica e sexual, a desigualdade no trabalho, o descaso aos direitos reprodutivos e à misoginia cultural renitente.
A ameaça de retrocesso nessas áreas atinge de modo direto a comunidade científica, tanto no que ela proporciona em termos de ‘achados e descobertas’ quanto na necessária aproximação que construiu com os temas e dilemas da nossa forma de vida.
Renato Lessa
Departamento de Ciência Política
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Ciências Sociais
Universidade de Lisboa