Os rios fornecem um elemento crucial para a existência da vida: a água. Isso torna esses ecossistemas extremamente importantes, sob o ponto de vista ambiental, social e econômico. Em condições naturais, o fluxo de água das nascentes (a montante) à foz (a jusante) molda o leito do rio, que, juntamente com galhos, folhas e seixos (‘pedras’), criam uma variedade de hábitats que abrigam diversas espécies aquáticas (figura 1). Em períodos de cheias, a água extravasa do canal para as margens e possibilita a troca de nutrientes entre o rio e os ambientes adjacentes, o que garante a sobrevivência de muitos organismos.

As primeiras grandes civilizações, na Mesopotâmia (onde hoje é o Iraque), na China, na Índia e no Egito, prosperaram próximas a grandes rios. A civilização egípcia, por exemplo, surgiu no meio de um deserto no norte da África, há mais de 5 mil anos. A sua sobrevivência somente foi possível porque o rio Nilo atravessa todo o Egito e, todos os anos, na mesma época, ele enchia, transbordava e alagava suas margens. Quando o nível da água diminuía, restava uma camada de húmus (matéria orgânica) que tornava o solo extremamente fértil.

Ainda hoje, os rios têm uma importância enorme para o desenvolvimento da sociedade. São eles que fornecem água para atividades agrícolas, areia para a construção civil, pescado, e garantem boa parte da produção de energia elétrica. Além disso, em regiões como a Amazônia, são cruciais para a navegação.


Figura 1. Rio em condições naturais (trecho superior do rio Macaé, Rio de janeiro). Estruturas como rochas, galhos e troncos interagem e criam uma grande diversidade de hábitats para os organismos aquáticos. (foto: Francisco de Assis Esteves)

Apesar de sua importância ambiental, social e econômica, os rios têm sido muito de­ gradados, especialmente em áreas urbanas. Nas cidades, a cada dia surgem novos prédios, novas indústrias, além de mais ruas e avenidas. Segundo a Organização das Nações Uni­ das (ONU), hoje mais de 50% da população mundial vive em áreas urbanas e estima­se que essa parcela seja de 70% até 2050. Em sua busca constante por novos espaços, as cidades se expandem e avançam sobre os cursos d’água. Com isso, os rios são reduzidos a canais retilíneos, espremidos pelo concreto das margens e têm seu funcionamento alterado de diversas formas (diretas e indiretas).

 

Alterações diretas

Em geral, as pessoas associam a degradação dos rios em áreas urbanas à presença de resíduos sólidos (garrafas plásticas, móveis, eletrodomésticos etc.). No entanto, grande parte das intervenções humanas se dá por meio de alterações na estrutura física dos canais.

Em condições naturais, os rios geralmente são sinuosos, ou seja, têm muitos meandros (curvas) ao longo de seu comprimento. A maior sinuosidade auxilia no controle do fluxo de água após tempestades, pois absorve energia e protege o leito e as margens da erosão excessiva. Os rios preservados também tendem a ser bastante heterogêneos, isto é, apresentam em seu leito uma grande diversidade de hábitats para peixes e invertebrados, que os usam como locais para reprodução, alimentação e refúgio de predadores.

Muitos rios têm seus cursos transformados em retas e suas margens concretadas ou a sua foz reduzida a uma manilha, enquanto outros são totalmente aterrados e deixam de existir

No entanto, muitos rios têm seus cursos transformados em retas e suas margens concretadas ou a sua foz reduzida a uma manilha, enquanto outros são totalmente aterrados e deixam de existir. Tais alterações diminuem a diversidade de hábitats nos cursos d’água e reduzem sua conexão com os ambientes adjacentes, além, é claro, de alterar fortemente sua dinâmica hidrológica.

Os rios naturais são também intimamente ligados à sua zona ripária (região de vegetação na planície de inundação do curso d’água). A mata ali presente reduz a entrada de poluentes no rio, estabiliza as margens e mantém a temperatura da água equilibrada pelo sombreamento. Além disso, essas áreas são de grande importância para incorporar ao rio detritos e nutrientes de origem terrestre, que atuam como fonte de energia para organismos como invertebrados e peixes. A zona ripária tem também grande importância no controle de cheias, o que explica o fato de ocorrerem tantas enchentes em cidades.

Como disse certa vez o poeta e dramaturgo alemão Berthold Brecht (1898­-1956), “do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Embora seja uma metáfora, essa frase pode ser interpretada literalmente no contexto dos rios presentes em cidades. Em áreas urbanas, para a construção de ruas, avenidas e edificações, as curvas dos rios são transformadas em linhas retas e o solo de sua zona ripária é impermeabilizado – asfaltado ou concretado (figura 2).


Figura 2. Rio degradado em meio urbano (rio Maracanã, Rio de Janeiro, RJ). O rio encontra-se canalizado, com suas margens concretadas e o solo da zona ripária impermeabilizado, o que aumenta a propensão a inundações na cidade. (foto: Roberto Nascimento de Farias)

Com a redução da sinuosidade, ocorre o aumento da energia associada ao fluxo de água e, consequentemente, o poder erosivo do rio em períodos de cheia. A impermeabilização dos solos urbanos faz com que a água da chuva escoe mais rapidamente para os rios, pois diminui consideravelmente a infiltração do solo. Somado a isso, existe o constante aporte de efluentes, que contribui para o aumento da vazão do rio. A interação desses fatores faz com que os rios em zonas urbanas apresentem uma rápida resposta hidrológica a chuvas (figura 3).

As causas e consequências das inundações nas cidades vão muito além dos aspectos ambientais. Elas têm um forte componente político e econômico. A redução da sinuosidade dos rios e a impermeabilização dos solos ocorrem para aumentar o espaço disponível para construção de prédios, residências, indústrias, o que favorece o enriquecimento de um grupo de pessoas. Apesar de seus elevados custos, em geral as obras para contenção de enchentes não passam de medidas paliativas. O problema não é atacado pelas causas, mas sim pelas consequências, com a construção de diques, o que novamente estimula o enriquecimento de algumas pessoas. Em outras palavras, prioriza­se a geração de ganhos financeiros, enquanto o funcionamento natural dos rios é tratado de forma secundária, com menos importância.


Figura 3. Causas das inundações nas cidades. A) Rio em condições naturais no período seco, com a água em seu nível de base. Em condições naturais, a mata ciliar tende a apresentar três estratos principais: árvores, arbustos e ervas. B) Rio em meio urbano que, mesmo no período seco, tem nível de água elevado, devido ao grande volume de efluentes domésticos e industriais que recebe. C) Rio em condições naturais no período chuvoso. A água extrapola a calha fluvial e alcança toda a planície de inundação. D) Rio degradado pela urbanização, em período chuvoso. O assoreamento e a impermeabilização do solo favorecem a ocorrência de inundações, que atingem principalmente as moradias estabelecidas na planície de inundação. (Imagem: Elaborada por Roberto Nascimento de Farias)

Além das alterações físicas em sua forma e estrutura, os rios em áreas urbanas também têm a qualidade de sua água comprometida (figura 4). A ideia de constante renovação da água tem levado a humanidade a usar os rios como destino final de efluentes (esgoto), tanto domésticos quanto industriais. No Brasil, por exemplo, a maior parte dos municípios não tem tratamento adequado de es­ goto, que é lançado diretamente nos rios. Isso favorece a ocorrência de organismos patógenos, como vírus, bactérias e microalgas produtoras de substâncias tóxicas, e pode comprometer a sobrevivência de muitas espécies. Além disso, devido aos níveis extremamente baixos de oxigênio dissolvido na água, decorrentes da degradação da matéria orgânica pelos micro­organismos, toneladas de peixes podem acabar morrendo.

A poluição das águas urbanas, além de comprometer a sobrevivência de muitas espécies aquáticas, pode trazer sérios problemas para a saúde humana. A água contaminada favorece a ocorrência e a transmissão de diversas doenças, entre elas, disenteria, hepatite, meningite e verminoses intestinais. Geralmente, a parte mais pobre da população é que fica mais exposta a essas mazelas, devido à falta de acesso à água tratada e à coleta e ao tratamento do esgoto. A poluição dos rios pode também contaminar a água subterrânea (no lençol freático), que, muitas vezes, é usada para o abastecimento humano, principalmente nas regiões da cidade onde não há fornecimento de água tratada.

Além das alterações diretas em seu funcionamento, os cursos d’água nas áreas urbanas podem também ser degradados indiretamente por uma série de outros fatores.

 

Alterações indiretas

Os rios fazem parte de sistemas maiores, que envolvem aspectos de clima, geologia e vegetação, assim como uso e ocupação do solo. Eles transportam sedimento, matéria orgânica e compostos químicos dissolvidos, pois atuam como corpos receptores de processos ocorridos no ambiente terrestre. Em outras palavras, os rios são intimamente ligados à paisagem de seu entorno. Dessa forma, para entender como um rio funciona, é preciso considerar sua bacia hidrográfica, isto é, toda a região da superfície terrestre delimitada por áreas mais altas do relevo e cuja água da chuva recebida é drenada para esse rio.


Figura 4. Perda de qualidade da água em decorrência do aporte contínuo de esgoto doméstico no canal Campos-Macaé, em Macaé (RJ). Embora este seja um canal construído artificialmente, toda a poluição transportada deságua no rio Macaé, que fica dentro da cidade. (foto: Roberto Nascimento de Farias)

As atividades humanas na bacia hidrográfica causam indiretamente a degradação de rios e riachos. Quando chove, a água da chuva carrega os poluentes do ambiente terrestre para os corpos receptores, como rios, lagos e áreas úmidas. Nas cidades, os rios recebem todos os resíduos acumulados nas ruas, calçadas e praças. A poluição desse tipo é chamada de difusa, pois não é lançada em pontos específicos, como ocorre com o esgoto.

Com a expansão das cidades, ocorre também a remoção da vegetação natural na bacia hidrográfica. Quando chove, a água da chuva incide diretamente sobre o solo e provoca a sua erosão. Isso faz com que grandes quantidades de sedimento (areia, argila, entre outros) sejam levadas para ecossistemas aquáticos em áreas de baixada, como vales e depressões. Com isso, ocorre o assoreamento dos rios, isto é, o acúmulo intenso de sedimento e detritos na calha fluvial.

O sedimento fino transportado para os rios preenche os es­ paços entre rochas presentes no leito, que antes eram usados como hábitat pelos organismos. Isso também torna as águas mais turvas e diminui a disponibilidade de luz para os organismos aquáticos fotossintetizantes. Sendo assim, o assoreamento dos rios compromete a sobrevivência de muitas espécies e tende a reduzir a biodiversidade desses ambientes.

A remoção da vegetação natural altera o ciclo hidrológico e, ao mesmo tempo que favorece as recorrentes inundações, também colabora para as secas pronunciadas nas cidades

A remoção da vegetação natural altera o ciclo hidrológico e, ao mesmo tempo que favorece as recorrentes inundações, também colabora para as secas pronunciadas nas cidades. As florestas atuam como esponjas: absorvem a água da chuva e fazem com que ela se infiltre pouco a pouco no solo, até atingir o lençol freático. Dessa forma, garantem uma distribuição mais uniforme da chuva ao longo do ano. Nas nascentes dos rios, a mata ciliar, que ocorre próximo às margens, protege e sombreia a lâmina d’água – assim como os cílios nos nossos olhos –, o que reduz a evaporação e aumenta a disponibilidade hídrica. Com a remoção dessa vegetação, a água que se infiltraria no solo escoa rapidamente rio abaixo. Além disso, a maior exposição da lâmina d’água à luz do sol faz aumentar sua taxa de evaporação.

As atividades humanas na bacia hidrográfica se refletem na quantidade e na qualidade da água, assim como no funcionamento natural dos rios. Todas essas alterações diretas e indiretas nos cursos d’água atuam em conjunto e levam a uma série de danos ambientais, sociais e econômicos.

 

Recuperação de rios

Apesar de grande parte dos rios urbanizados encontrar­se intensamente degradada, há iniciativas de recuperação desses ecossistemas no mundo todo. O rio Cheonggyecheon (Seul, Coreia do Sul), por exemplo, que já estava bastante poluído na década de 1940 e totalmente pavimentado na década de 1960, foi restaurado por completo entre 2003 e 2005. A área asfaltada foi transformada em um parque de quase 5,3 km junto ao rio e recebe hoje mais de 60 mil pessoas por dia.

No Brasil, um exemplo semelhante é o projeto Parque Várzeas do Tietê, que teve início em 2011 na cidade de São Pau­ lo. Segundo o portal do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, esse será o maior parque linear do mundo, com 75 km de extensão e 107 km2 de área. O principal objetivo do programa é recuperar e proteger a função das várzeas do rio Tietê, além de funcionar como um regulador de enchentes e oferecer opções de lazer aos moradores das regiões onde será implementado.

Para que os rios possam ser preservados ou restaurados, a expansão das cidades precisará ocorrer de forma planejada. Além disso, os problemas sanitários e ambientais precisam ser tratados no nível de bacia hidrográfica. Esse é o caso do Programa Drenurbs, implantado em Belo Horizonte (MG). Esse projeto prevê a construção de parques com vegetação ao longo dos cursos d’água e bacias de detenção (para diminuir o risco de inundações), assim como o envolvimento da comunidade local nas ações de gestão.

A preservação dos rios nas cidades deve começar com mudanças culturais. Esses ecos­ sistemas precisam ser vistos como parte integrante da paisagem urbana. Enquanto a sociedade não compreender a sua importância, serão cada vez mais comuns paradoxos como o de grandes cidades que, em meio a crises hídricas, veem seu território cortado por rios caudalosos, porém com água de péssima qualidade.

 

Sugestões para leitura

ALLAN, J. D. & CASTILLO, M. M. Stream ecology: structure and function of running waters. 2a ed., Springer, Dordrecht. 2007.
BAPTISTA, M. & CARDOSO, A. Rios e cidades: uma longa e sinuosa história… Revista da Universidade Federal de Minas Gerais. 20 (2). 2013.
GUERRA, A.J.T. & CUNHA, S.B. Impactos ambientais urbanos no Brasil. Rio de janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2000.
SIQUEIRA, R.M.B. & HENRY-SILVA, G.G. A bacia hidrográfica como unidade de estudo e o funcionamento dos ecossistemas fluviais. Boletim da Associação Brasileira de Limnologia. 39(2). 2011.

 

Roberto Nascimento de Farias
Marcos Paulo Figueiredo-Barros
Francisco de Assis Esteves

Programa de Pós-graduação em Ciências Ambientais e Conservação (PPG CiAC), Universidade Federal do Rio de Janeiro, campus Macaé

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