Realizada com papéis administrativos do gueto de Theresienstadt – como ficou conhecido o campo de concentração localizado nas imediações de Praga, hoje parte da República Tcheca –, a colagem acima testemunha um encontro breve e improvável. O encontro entre duas pessoas à beira do abismo, pouco antes de fitarem as Górgonas, na certeira expressão do escritor Primo Lévi, sobrevivente do campo de extermínio, ao se referir àqueles que não retornaram de Auschwitz.
A autora chama-se Sonja Spitzova e os três últimos anos de sua curta vida transcorreram como prisioneira em Theresien. Lá encontrou a artista austríaca Friedl Dicker-Brandeis, egressa da Bauhaus, importante escola de arte e arquitetura que funcionou entre 1919 e 1933 na Alemanha, onde foi aluna de Paul Klee e Oskar Schlemmer.
Deportada para Theresienstadt em 1942, Friedl adaptou sua experiência na Bauhaus à realidade do gueto e passou a ensinar arte a crianças e adolescentes. Sua iniciativa tornou possível a realização de um expressivo conjunto de desenhos. A contemplação desses desenhos nos exorta ao testemunho. Diante dessa tarefa, palavras e comentários parecem inúteis, impotentes, fora de foco. Contudo, não nos resta alternativa senão falar sobre essas imagens, propagá-las, divulgá-las, tentar conferir-lhes sentido, transpondo o choque provocado pelo abismo entre aquilo que dão a ver, seu caráter aparentemente singelo, e o que efetivamente sabemos sobre elas, seus motivos e razões de existir.
Importa ressaltar que o vermelho vibrante do fundo da colagem de Sonja, intitulada ‘Guarda com bastão’, aparece também em trabalhos de várias outras crianças e talvez tenha sido um dos poucos materiais disponíveis. Creio que a singularidade dessa colagem resida em sua insistência na figura humana, nas silhuetas recortadas e sobrepostas na parte inferior, formando uma massa quase indiferenciada de corpos, não fosse a figura feminina à direita, destacada, íntegra, dotada de sutil autonomia.
Talvez tenha sido mero acaso, não sei, mas uma leve falta de cola no pequeno pedaço de papel que dá forma ao braço direito confere inesperado movimento à figura, que avança então em primeiro plano. Assim, faço dessa silhueta a verdadeira protagonista da imagem, e não a figura masculina ao alto, que mesmo de modo infantil, ostenta poder.
Se Sonja me permitisse, faria uma intervenção em seu desenho, reafirmando os contornos dessa forma feminina, identificando-a decididamente a seu próprio corpo, ausente, suprimido aos 13 anos, em Auschwitz. Se a colagem acima não foi capaz de salvar a vida de suas duas autoras – Sonja e Friedl –, preserva-as em humanidade. E permanece como gesto vigoroso de resistência e fé na humanidade de todos nós.
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Leila Danziger é artista plástica e professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.