Primeiros séculos da era cristã, Europa em ruínas. Enquanto o velho continente agonizava em crises profundas, o Império Islâmico vislumbrava um esplendor civilizatório sem precedentes. Não apenas pela conquista de vastos territórios – que se estendiam da península ibérica à Índia –, mas também por reunir os mais sofisticados conhecimentos disponíveis então. Foram os árabes os grandes herdeiros da sabedoria grega.
Também foram eles os compiladores e tradutores das principais obras persas, mesopotâmias, egípcias e hindus. Para os estudiosos, o islã é muito mais do que sugere a fugacidade noticiosa de nossos dias. “Temos em geral uma visão distorcida do islamismo, originada em uma simplificação que deturpa completamente o que é essa civilização e essa cultura.”
São palavras da historiadora e cientista política Beatriz Bissio, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em outubro, ela lançou o livro O mundo falava árabe [Civilização Brasileira] durante o 36º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em Águas de Lindoia (SP) (ver ‘Diálogos e reflexões’, nesta edição).
É uma elegante narrativa sobre a história do islã a partir de dois autores clássicos do século 14: Ibn Khaldun (1332-1406), destacado historiador que, para alguns, inaugurou o pensamento sociológico islâmico, e Ibn Battuta (1304-1368), viajante que percorreu longas distâncias do norte da África à Ásia e registrou em detalhe o que viu em suas andanças. Da comparação entre esses dois registros – do historiador e do viajante – Bissio oferece ao leitor um olhar tão refinado quanto profundo acerca do florescer da civilização islâmica.
No Brasil, poucos são os escritos sobre o islã. Qual foi sua motivação para lançar O mundo falava árabe?
Escrevi o livro porque quis aprofundar meus conhecimentos sobre o assunto. Sou também jornalista, e por duas décadas viajei para cobrir a realidade do Oriente Médio e do norte da África. Vivenciei as guerras do Líbano e do Iraque, a questão Israel-Palestina, entre outros temas, na Argélia, Líbia e Egito. Fui uma das fundadoras da revista Cadernos do Terceiro Mundo, em Buenos Aires, em 1974, e sediada no Brasil a partir de 1980. Viajava regularmente ao Oriente Médio e à África, e o islã era sempre um dado da realidade sobre a qual escrevia.
Admirava profundamente a cultura, mas, por nunca tê-la estudado em profundidade, sentia que a minha visão ficava muito restrita aos fatos do cotidiano, nem sempre compreensíveis sem a perspectiva da história. Iniciei um estudo mais sistemático, e disso resultou minha tese de doutorado, defendida na Universidade Federal Fluminense [UFF], posteriormente adaptada em livro.
Por que escolheu Ibn Khaldun e Ibn Battuta como personagens centrais de seu estudo? Quem são esses autores?
Quis estudar a civilização islâmica a partir do olhar de seus próprios autores, e a obra de Ibn Khaldun, historiador que nasceu em Túnis (atual Tunísia) no século 14, não pode ser ignorada. Ele foi provavelmente o autor islâmico mais representativo de seu tempo. Minha orientadora [Vânia Leite Fróes, da UFF] foi quem sugeriu estabelecer uma espécie de contraponto entre os escritos de Ibn Khaldun e os relatos de seu contemporâneo Ibn Battuta, um viajante que ao longo de quase 40 anos percorreu longas distâncias pelos vastos domínios do Império Islâmico.
Por que Khaldun é considerado tão importante?
Suas reflexões, traduzidas em vários trabalhos, são extremamente complexas e sofisticadas. Sua obra-prima, os Prolegômenos (Muqaddimah), é considerada o momento fundacional do pensamento sociológico islâmico. Não é uma obra tradicional de história, como as que eram comuns até então, limitadas a narrar cronologias de dinastias. Ibn Khaldun inaugura um estudo que visa o entendimento das causas dos fenômenos históricos e, mais do que isso, os estudos sobre a sociedade humana. Moderno para a época, não? Extremamente moderno.
É uma descoberta para o Ocidente que um pensador islâmico, no século 14, tenha trabalhado questões que vieram a ser estudadas, no mundo ocidental, somente dois séculos depois. Ao teorizar sobre estado, autoridade e poder, Ibn Khaldun antecipa [Thomas] Hobbes [1588-1679] e [Jean-Jacques] Rousseau [1712-1778]. Fez também descrições detalhadas da relação entre o ser humano e os demais seres vivos. Uma riqueza é a obra de Ibn Khaldun.
E quanto a Ibn Battuta?
Viajou durante quase 40 anos, por um território equivalente ao que hoje seriam 46 países. O mundo islâmico era alicerçado pela língua árabe; o viajante poderia sair do Marrocos, percorrer toda a Ásia central e chegar à China falando árabe! Era a língua franca da época (daí o título de meu livro).
Ibn Battuta era juiz em Tanger (atual Marrocos) e iniciava sua viagem de peregrinação à Meca, obrigação de todo bom muçulmano. Mas, ao se desprender de seu país e de seu entorno, descobre que tem uma paixão pela aventura, pelo conhecimento, por desvendar os mistérios do mundo – e vai sempre acrescentando novos desafios à sua jornada. Acaba fazendo três vezes a peregrinação. Quando retorna à sua terra, depois de décadas, já havia uma espécie de lenda em torno dele, o viajante que nunca aparece. Pensavam que tinha morrido.
A corte o recebeu muito bem, e o califa estava interessadíssimo em conhecer o mundo pelos relatos daquele viajante que percorrera, por tanto tempo, os domínios daquele que fora o maior império na época medieval. Ávido por incorporar a sabedoria da valiosa fonte de informações que era Ibn Battuta, encomendou um relato escrito dessas viagens. Assim nasceu a Rihla [em tradução livre, ‘jornada’], uma obra fascinante.
Na época já havia uma tradição de literatura de viagens – que se tornou um gênero literário nas letras árabes. Isso se deu principalmente em função da obrigatoriedade da peregrinação à Meca. Onde pernoitar? Que cuidados tomar? Que alimentos serão encontrados pelo caminho? Como planejar o retorno? Naquele tempo, criou-se uma tradição literária em torno dessas questões. No caso de Ibn Battuta, porém, o relato ganhou dimensões muito mais expressivas, pois sua viagem foi a jornada de toda uma vida.
Mas ele percebeu que não teria condições de produzir um texto com a beleza estilística que esse tipo de depoimento exigia. Então ditou suas memórias a um poeta, que deu forma definitiva ao livro. O resultado é muito interessante: um verdadeiro relato etnográfico. Descreve a estrutura social dos locais por onde passou, as vestes, a culinária, os hábitos, as relações de poder, as interações entre homens e mulheres, as formas de se pensar e viver a religião… Trata-se de um documento histórico e antropológico da maior importância.
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