Existem vários tipos de memórias. Umas são de curto prazo, como lembrar quais eram as condições do tempo há mais de 24 horas: é difícil recordar em que dia choveu na semana passada, a menos que a chuva tenha sido associada a algum evento mais marcante. Outras são de médio prazo, como senhas bancárias, alguns endereços, números de documentos etc. Finalmente, há aquelas que guardamos por toda a vida, como o nosso nome e certos odores especiais.
Os neurocientistas têm se esforçado para compreender que mecanismos regem a memória mais duradoura e o que assegura sua longevidade, no nível molecular e fisiológico. Há várias propostas. Algumas envolvem a participação de hormônios como o cortisol, outras defendem que a chave estaria em modificações epigenéticas no DNA – ou seja, alterações nessa molécula que acrescentam marcas em locais específicos, sem mudar a sequência de seus componentes.
Embora sem explicação definitiva, há consenso sobre a existência da memória duradoura, ou consolidada, e acredita-se que esta exige alguma modificação, nos neurônios, que facilite sua transmissão.
Mal comparando, pode-se imaginar uma rede formada por fios condutores de eletricidade que priorize certos trajetos para a corrente elétrica. Assim, esta percorreria apenas aqueles trajetos, e a preferência por tais caminhos estaria predeterminada por alterações ocorridas somente em alguns fios da rede. Se certos fios fossem, por exemplo, bloqueados por peças isolantes, a corrente elétrica não seria transmitida por eles. No caso dos neurônios, que modificações seriam essas?
A hipótese hegemônica, atualmente, sugere que as alterações se dariam nas sinapses, as regiões de contato entre dois neurônios. Com isso, os impulsos nervosos seriam direcionados para circuitos preferenciais ao longo do sistema nervoso central. Segundo essa hipótese, as sinapses – provavelmente milhares – com essas mudanças formariam, na rede neuronal, um ‘mapa’ que evocaria determinada memória. Assim, memórias temporárias envolveriam alterações transitórias nas sinapses e memórias consolidadas exigiriam alterações permanentes.
Não existem, porém, evidências concretas de quais seriam essas modificações e de como seriam mantidas por toda a vida de um indivíduo. Isso torna difícil elaborar uma teoria na qual as células de um tecido, envolvidas em intensos processos de degradação e de síntese de seus componentes, possam adotar rapidamente uma conformação permanente, produto de um processo de aprendizagem.
Um possível mecanismo molecular foi sugerido pelo bioquímico Roger Y. Tsien, da Universidade da Califórnia (San Diego), em artigo recente publicado na PNAS. Tsien propõe que o segredo esteja na trama formada pela rede perineuronal, uma estrutura extracelular que envolve e dá sustentação aos neurônios maduros do sistema nervoso central.
Sabe-se que a rede perineuronal permite, ou não, a formação de sinapses em certos intervalos. Assim, atuaria como o isolante da analogia com redes elétricas. Essa rede, para Tsien, formaria estruturas locais com um padrão de ‘orifícios’ de passagem dos impulsos que estabeleceria um código – algo similar aos cartões perfurados que serviam como programas nos primeiros computadores. O cientista não apresenta resultados e, imodestamente, compara sua ideia com a descoberta da estrutura do DNA, na qual James Watson e Francis Crick (1916-2004), sem realizar experimento algum, propuseram um modelo teórico que provou ser verdadeiro.
A menção ao DNA traz à mente uma instigante possibilidade. Considerando que, em última análise, o DNA contém a informação para o estabelecimento da própria rede perineuronal, se as alterações nos neurônios forem mantidas nas células reprodutivas (gametas), memórias consolidadas talvez pudessem ser transmitidas de uma geração a outra. Ideia demasiadamente fantasiosa? A herança de caracteres adquiridos também era, mas hoje já são conhecidos casos em que acontece.
Franklin Rumjanek
Instituto de Bioquímica Médica
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Texto originalmente publicado na CH 307 (setembro de 2013).