Ao se comemorar ano passado o centenário de nascimento de Nelson Rodrigues, destacou-se o seu talento múltiplo – como jornalista, escritor e autor de teatro. É este último, porém, que se tornou um clássico indiscutível da cultura brasileira: o dramaturgo cujas peças estão permanentemente em cartaz, além de adaptadas para o cinema e a televisão.
Para falar da obra dramática de Nelson Rodrigues, o sobreCultura entrevistou a atriz e pesquisadora Angela Leite Lopes, autora de Nelson Rodrigues, trágico então moderno (Nova Fronteira, 2007) e tradutora para o francês das peças Doroteia, Senhora dos afogados, Valsa no 6, A serpente, Toda nudez será castigada e Beijo no asfalto.
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Angela Leite Lopes fala do caráter trágico do autor e da sua atualidade. De como o autor tem sido objeto de leituras as mais diversas, na universidade e nos palcos de todo o país.
sobreCultura: Nelson Rodrigues chamou muitas de suas peças de ‘tragédias’. Em que medida ele foi fiel ao gênero dramático surgido na Grécia antiga?
Angela Leite Lopes: A tragédia grega acontece num momento singular em que o teatro tinha, mais que presença, uma repercussão na vida das pessoas que iam assistir às peças. É algo que nunca mais teremos porque é um fenômeno específico daquele momento, da Grécia no século 5 a.C, quando a democracia está se formando. A tragédia é um elemento importante nesse processo de formação da pólis, não porque dissesse algo sobre isso, mas porque colocava em cena as ambiguidades existentes nos discursos. E Nelson Rodrigues vai lá na mosca. Ele captou essa pluralidade de sentidos que as línguas modernas foram perdendo e conseguiu esse efeito dentro da nossa possibilidade linguística atual.
O teatro rodriguiano tem dois ciclos – o das tragédias propriamente e depois o ciclo maior de tragédias cariocas. No primeiro – que inclui Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados –, ele parte da estrutura da tragédia clássica e brinca com isso. Usa as figura do coro e do herói. O herói como alguém que tem uma vida privilegiada e que sofre algum revés, uma queda que o coloca diante de situações limites.
São assim os personagens de suas tragédias. Não têm a mesma estatura heróica da Antiguidade, claro, mas são figuras notáveis até que uma desgraça se abata sobre as famílias. Em Álbum de família, todas as relações são incestuosas. Em O anjo negro, é uma mãe que, sendo branca e casada com um negro, afoga os filhos porque não são brancos. Em Senhora dos afogados, a ação começa no dia em que a segunda filha morre afogada. Enfim, uma desgraça só. [risos]
Depois do sucesso estrondoso de Vestido de noiva, em 1943, a peça Álbum de família, de 1945, foi censurada e liberada apenas muito tempo depois. Nelson também passa a ser rejeitado pelo público, que acha implausível essa sucessão de desgraças…
Nelson tem um texto muito importante chamado ‘Teatro desagradável’, que saiu no primeiro número da revista Dionysos, em 1949, em que ele comenta que as pessoas criticavam haver tantas relações incestuosas em Álbum de família. Diziam que tinha incesto demais ali. Como se pudesse haver incesto de menos.
Ele diz que o incesto em si já é o excesso e que era este o efeito dramático que buscava: o excessivo. A ideia não é colocar em cena algo que poderia ter acontecido. Ele não quer que o espectador pense algo como “coitada daquela família, ainda bem que não foi com a minha”, e sim como nós, seres humanos, somos inscritos em experiências de paixão.
Outro texto dele muito revelador, nesse sentido, é o do programa de Senhora dos afogados, que estreou em 1954. Ele diz que o que caracteriza uma peça trágica é o poder de criar a vida e não de imitá-la. Muitas vezes, por influência do naturalismo, achamos que o que se assiste no palco é uma fatia de vida. Nelson desconstrói isso, qualquer ideia de verossimilhança. Ele acredita que o teatro é uma experiência própria e os personagens são criados para provocar determinadas inquietações, espantos, paixões.
Como jornalista e escritor, Nelson Rodrigues era um provocador. Era também isso que visava com suas peças?
Sim, mas de modo diferente. O anjo negro – peça que causou e até hoje causa um grande impacto – é um bom exemplo. Nelson escreveu muitas crônicas sobre a questão do negro e do racismo no Brasil. Sempre muito polêmico e provocador, ele questionava a imagem de uma democracia racial. Então escreveu a peça, que encena o antagonismo de um negro (Ismael) casado com uma branca (Virgínia).
A peça abre com o coro das pretas descalças comentando a ação e já introduz aquela fatalidade (para usar um termo da tragédia) de que ali nenhuma criança se cria. Os filhos se afogam, um a um, num tanque rasinho, como por uma maldição. Ismael é um médico bem-sucedido, um negro que odeia ser negro; Virgínia, uma branca que odeia aquela situação toda. Ao escrever essa tragédia, Nelson não está preocupado em mostrar um incidente de racismo, e que este seja julgado ou castigado no final, ou afirmar se o Brasil é ou não uma democracia racial. Interessa a ele como essa questão do racismo está imbricada com muitas outras. Ele mostra que tem uma questão que passa pelo negro e a relação dele com isso, pelo branco e a relação dele com isso, passa pelo amor, pelo desejo. Ele nos coloca diante dos dilemas de todo mundo, de como se determina a paixão e se é determinado por ela. Se fosse uma peça que simplesmente punisse ao final, tudo se resolveria, o público sairia tranquilo do teatro e esquecia aquilo.
Uma curiosidade é que a peça foi montada em 1949 e na reunião de produção do espetáculo lhe disseram que seria um ator branco que faria o personagem. Diante do seu espanto, disseram que não tinha problema, pois o ator seria pintado de preto. Ele pensou em não autorizar a montagem, mas Abdias do Nascimento, que servira de inspiração para a peça, lhe convenceu que seria mais importante que a peça fosse encenada. “Batata!”, como ele diria – a questão da democracia racial no Brasil já foi desconstruída nesse episódio.
É possível distinguir, no teatro rodriguiano, o que é tragédia e o que é melodrama?
Um dos traços da modernidade é que essa questão de estilo deixa de ser determinante. Mas Nelson tem um lado melodramático sim. Ele sabia usar muito bem os recursos todos da dramaturgia. No melodrama, várias desgraças vão acontecendo e algo bombástico sucede para arrematar aquela infelicidade. Nelson brinca com isso – em Vestido de noiva, um personagem começa no meio da trama a dizer falas da Traviata, ópera baseada no melodrama A dama das camélias.
No melodrama, o importante é que a plateia se envolva, entre na história e que haja um final retumbante. Quando você vê, está chorando, rindo. Enquanto na tragédia há uma condução, o desenho é mais visível. Mas não há exclusão. Os recursos melodramáticos surgem em alguns momentos sem nenhuma contradição com o fato de Nelson chamar de tragédias suas peças. Ali onde se lê trágico, lê-se teatralidade.
Nas suas tragédias cariocas, situadas em bairros da zona norte do Rio de Janeiro, Nelson é mais sutil. Você até acha que ele está simplesmente contando uma historinha, no sentido tradicional, só que ele vai amarrando o diálogo de uma forma poética que obriga o público a fazer sua própria experiência de linguagem. Nelson tem plena noção de que o teatro é uma possibilidade de construir um sentido. Mas ele não constrói esse sentido para o público, o público é que tem que construir.
A montagem de Vestido de noiva é considerada um marco inaugural do teatro moderno no Brasil. Que outras, depois desta, se poderiam destacar?
A encenação do diretor polonês Zbgniev Ziembinski na montagem de Vestido de noiva, com os Comediantes, cenário do Santa Rosa, foi realmente um marco. Foi a primeira vez que se usou aquela iluminação no teatro brasileiro, com mais de cem trocas de luz durante o espetáculo. A concepção da cena em três planos – alucinação, realidade e passado – foi uma grande novidade também. À frente do palco, na boca de cena, havia o plano da alucinação e duas escadas laterais marcavam os planos do passado e da realidade. No final, contracenam duas personagens, uma que já morreu e outra que ainda vive. Isso é muito forte como imagem teatral.
Veja Angela Leite Lopes
falando sobre Nelson Rodrigues
Depois da encenação de Vestido de noiva, as inúmeras montagens que se seguiram trouxeram outras qualidades. Inclusive se passou a discutir a necessidade de se distinguir os planos, porque hoje em dia já há mais capacidade de abstração. A montagem do grupo Tapa, de Eduardo Tolentino, em 1994, por exemplo, também trabalhou com planos, mas trouxe uma novidade – Alaíde, a protagonista, que originalmente parecia trafegar por aqueles planos de uma forma quase britânica, foi mostrada como uma histérica, uma mulher insatisfeita.
E Antunes Filho, que, quando se voltou para o Nelson já tinha uma estética forte, bem sólida e consagrada depois de ter feito Macunaíma, mostrou que se podia ser contemporâneo com Nelson, que – ao contrário do que se dizia então – não precisava fazer um melodrama carioca ou carioquices para encenar o autor. Ele mostrou que podia encená-lo – e muito bem – com sua teatralidade econômica, quase oriental.
E as novas montagens?
Neste ano, do centenário, Nelson foi montado no país inteiro. Vi uma montagem recente do Beijo no asfalto, no Rio, que optou por colocar a cena do atropelamento e do beijo, que no texto original não aparecem. Pessoalmente acho que, com isso, perde muito do impacto porque o espectador deixa de fantasiar e a fantasia tem lugar importante na peça. Mas a montagem acaba funcionando por um outro canal.
Nesse dia o teatro estava lotado e a plateia ria muito. Na cena em que a filha fala que acha que o pai é apaixonado por ela, uma moça atrás de mim comentou: “Incesto, claro, com Nelson Rodrigues tem que ter incesto”. Muito por conta também das adaptações para a televisão, ele passou a habitar o imaginário de todas as camadas da população. Todo mundo hoje tem uma noção do que seja o universo do Nelson, todo mundo tem pelo menos uma frase dele para citar. Isso é um ganho, porque quando comecei a estudá-lo, ele era um autor maldito, muito estigmatizado. A grandeza dele era inegável, mas, nos anos de ditadura, o que predominava era o embate dele com os autores mais preocupados em fazer um teatro engajado. Isso só mudou a partir dos anos 1990. Mas hoje Nelson se tornou um clássico, e um clássico permite todas as leituras possíveis; não há um certo e um errado. Um clássico resiste a todas as versões que ele propicia, a todas as intempéries.
*Com colaboração de Joyce Santos