De reportagens policiais até a direção de uma das bibliotecas mais importantes do mundo. A longa trajetória do historiador Robert Darnton pelo universo das humanidades tem muitas facetas, que se unem em torno de um anseio comum: tornar o acesso à cultura escrita cada vez mais amplo. Um objetivo que, segundo o próprio Darnton, tem raízes nos ideais do Iluminismo francês, objeto de estudo e fascínio do historiador desde o começo de sua carreira acadêmica.
É da França do século 18 que o historiador tira inspiração para suas iniciativas e reflexões sobre o século 21 em diante. A ‘República das Letras’ – ideal iluminista segundo o qual todos teriam acesso ao conhecimento escrito –, para Darnton, teria mais chances de se concretizar hoje em dia do que à época em que foi elaborado.
Como? Com as transformações tecnológicas que impactam diretamente esse acesso, como a digitalização de livros, os livros eletrônicos, as plataformas digitais e outras ferramentas do tipo.
Nascido em Nova York, Darnton é hoje professor e diretor da biblioteca da Universidade Harvard. Nessa posição, tem mostrado um papel importante nas negociações da universidade com a empresa Google para a criação do Google Book Search, empreendimento que, se aprovado pelo Tribunal Federal norte-americano, deverá digitalizar milhões de livros e disponibilizá-los no mercado.
A questão que atormenta o historiador e que, inclusive, o levou a publicar seu último livro – A questão dos livros: passado presente futuro (Companhia das Letras, 2010) – é justamente sobre as implicações que o Google Book Search terá sobre o acesso à cultura.
Foi este o tema da participação do historiador na Feira Literária de Paraty (Flip), encerrada no último domingo em Paraty (RJ). Nesta entrevista, dada por telefone, Darnton fala sobre como seu estudo sobre o passado o ajudou a construir um futuro no qual novas tecnologias de leitura e estudo terão um papel fundamental – e consequências positivas e negativas para os seus usuários.
Como historiador cultural, o senhor estudou eventos pouco abordados pela historiografia tradicional: o grande massacre de gatos na França do século 18, literatura clandestina… Como esses temas podem contribuir para um maior entendimento de um período histórico?
Acho que a vida de pessoas comuns vale estudos por si só. Essa abordagem da história, chamada nos anos 1950 e 1960 de ‘underground history’ [história subterrânea], agora está se transformando em um campo de estudo que pode ser chamado de ‘história antropológica’.
O objetivo é entender a vida, os comportamentos, as crenças e a visão de mundo de pessoas comuns do passado da mesma forma que antropólogos fazem em campo com pessoas vivas.
Minhas pesquisas frequentemente abordam eventos que parecem triviais, mas que, na verdade, revelam bastante sobre um período. Isso é difícil de realizar. Como você cria uma história do comportamento de pessoas que morreram há dois ou três séculos?
No entanto, quando eu apresento essa questão para antropólogos, eles dizem: não é fácil apreender o clima geral de um grupo mesmo entrevistando pessoas em campo. O fato de você poder falar diretamente com alguém não significa que você tenha acesso direto à visão de mundo de um povo.
Por isso, nós, historiadores, trabalhamos de uma forma às vezes chamada de dialógica. Como o antropólogo, que baseia sua pesquisa em entrevistas, o historiador também dialoga, mas de forma diferente.
Eu encontro alguma coisa nos arquivos, tenho uma ideia ou levanto uma hipótese, procuro outro documento e assim vai. Ou seja, também estou indo e voltando com questões entre fontes.
É como uma conversa. Podemos conversar não diretamente com os mortos, mas com os documentos que eles deixaram. Tento captar um clima geral, ou até um sistema de valores. Embora também escreva em outros registros – como história diplomática ou política –, acho que o sentido antropológico é a chave mais importante para se destrancar o passado.
O senhor focou seus estudos no Iluminismo francês. Por que a fascinação por esse período?
Não sei bem qual a resposta para isso… Comecei meus estudos de graduação pensando que um dia iria estudar as tragédias do século 20, como as guerras mundiais. E achava que, para entender o século 20, eu deveria retroceder ao menos até a Revolução Francesa. Então, comecei a estudar a Revolução Francesa e nunca mais parei.
Ainda acho esse tema muito fascinante. No caso dos Estados Unidos, o Iluminismo e o século 18 estão nos fundamentos teóricos e políticos do país.
Quando eu e muitos outros protestávamos contra a guerra do Vietnã, na década de 1970, precisávamos de um ponto de referência para o nosso protesto. E foi muito tentador lançar mão dos trabalhos de Thomas Jefferson [1743-1826], James Madison [1751-1836] e Benjamin Franklin [1706-1790], os ‘pais fundadores’ dos Estados Unidos. Podemos aprender muito ao consultá-los.
Isso pode soar um falso patriotismo, mas meu ponto é: as ideias que eles lançaram estão vivas, e podem nos ajudar contra os abusos políticos de hoje. Eu, sinceramente, acho o iluminismo realmente inspirador, e não apenas um objeto de estudo acadêmico.
Mas o contexto social do Iluminismo era bastante injusto, não?
Sim. E uma coisa clara na história social é que a maioria dos franceses nessa época vivia em péssimas condições sociais, sem ter comida suficiente. Isso é uma coisa difícil de entender, pelo menos nos Estados Unidos.
Isso faz com que seja ainda mais importante, para meus alunos, estudar esses assuntos por meio dos quais se pode ouvir a voz dos desvalidos. A vida no século 18 era difícil, cruel e injusta, e, portanto, seria ingênuo idealizar o Iluminismo.
Assim, é interessante que a ideia iluminista de disseminar conhecimento por uma imprensa livre não pudesse ser concretizada no século 18. No entanto, nas sociedades avançadas de hoje, isso pode ser feito. Nesse sentido, eu consigo ver uma conexão entre a minha pesquisa inicial, sobre o século 18, e meu trabalho de agora.
Espero que, por meio do uso da internet e das tecnologias modernas, nós possamos abrir a biblioteca da Universidade Harvard e tornar suas riquezas intelectuais disponíveis para o resto do mundo. É uma espécie de missão do Iluminismo que é de fato possível, dadas as condições de hoje em comparação com as do século 18.
Isabela Fraga
Ciência Hoje/RJ