A pouco mais de 100 m da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, já é possível ver os primeiros pilares de concreto do que virá a ser o Museu do Amanhã, uma casa do conhecimento ancorada na baía de Guanabara que traz a marca arquitetônica do espanhol Santiago Calatrava, com um projeto totalmente sustentável. A conclusão das obras desse gigante de 15 mil m2 está prevista para meados do ano que vem, e sua inauguração para 1º de março de 2015, aniversário de fundação da cidade.
À frente do projeto, como curador, está o físico e doutor em cosmologia Luiz Alberto Oliveira, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF/MCTI). Ele apresenta ao sobreCultura um esboço do que pretende com a implantação desse novo centro cultural na zona portuária carioca: oferecer ao visitante meios de refletir sobre a construção de futuros possíveis, a partir de uma experiência sensorial e uma narrativa poética únicas. Segundo Oliveira, o amanhã que queremos está em nossas mãos. As escolhas que fizermos hoje serão decisivas para o planeta, e o museu será o espaço para pensarmos sobre elas.
sobreCultura: Por que construir um museu de ciência não convencional, com um projeto arquitetônico futurístico, no centro histórico do Rio de Janeiro?
Luiz Alberto Oliveira: O ponto de partida foi o projeto de revitalização urbana da área portuária, de retomar o antigo coração histórico do Rio, um dos lugares com sítios extremamente significativos da vida da cidade e que estavam abandonados, degradados, em virtude do privilégio equivocado dado ao trânsito de veículos no lugar da habitação das pessoas. Acho que é [o arquiteto] Paulo Mendes da Rocha que diz que “onde passa um viaduto, nada mais cresce embaixo”.
Então surgiu essa proposta de assinalar, por meio de uma obra do Santiago Calatrava, arquiteto de renome internacional, um marco inovador desse processo de revitalização urbana. A ideia inicial era instalar ali um museu da sustentabilidade, mas, quando se descobriu que já estava em curso um projeto desse tipo no Jardim Botânico e que também havia outros museus de arte na região, pensou-se em outro tipo de espaço cultural. Como não havia um museu de ciência na cidade, pensou-se nessa possibilidade. Hoje, essa opção já é indiscutível.
O que o Museu do Amanhã tem de inovador em relação a outros centros culturais do país?
[O cientista, divulgador e museólogo espanhol] Jorge Wagensberg, um de nossos consultores, diz que os museus de ciência têm hoje a função que as catedrais tinham no passado, a de proporcionar a seus visitantes uma experiência fora do cotidiano. Muitos museus de arte fazem isso, mas, segundo Wagensberg, essa seria a função de um museu de ciência neste momento de nosso estágio cultural.
Então, pensamos em fazer um museu de ciência original, que não se contentasse em registrar fatos, como os museus de história natural, que acumulam vestígios do passado – fósseis, artefatos etc. –, nem em explicar fatos, mostrando o funcionamento das leis e os princípios da natureza como fazem os museus demonstrativos e expositivos, nem tampouco ser mais um museu exploratório, em que o visitante põe a mão na massa.
A ideia do Museu do Amanhã é a de ser um museu em que a ciência é aplicada à exploração das possibilidades de construção de um amanhã, onde as pessoas são convidadas a explorar essas vias de construção de futuro a partir dos instrumentos que a ciência contemporânea nos oferece. A ciência nos permite elaborar uma série de cenários, cujas concretizações futuras vão depender de decisões tomadas hoje pela sociedade. Então, queremos oferecer a experiência de refletir sobre esses diferentes caminhos que se abrem e suas ações que, se empreendidas, vão viabilizar um deles ou vão nos levar para outros caminhos. Nesse sentido é um museu conceitualmente virtual.
É quase como mergulhar no conto ‘O jardim dos caminhos que se bifurcam’, do [escritor argentino Jorge Luis] Borges, em que diferentes universos se abrem em função das escolhas que fazemos.
Exatamente. O amanhã do qual o museu está falando não é o amanhã de uma estrada de tempo predeterminada. É exatamente a ideia borgeana do tempo como um grande labirinto. Se você seguir certos caminhos, você terá certos encontros. Outros encontros só existirão se você fizer uma escolha diferente. É uma ramificação de futuros possíveis. É essa a concepção do museu, de que o amanhã não está terminado e que as escolhas que fizermos como pessoas, cidadãos, membros da sociedade e da espécie humana vão concretizar esta possibilidade de futuro ou aquela outra.
Mas, curiosamente, o projeto arquitetônico tem uma linearidade espacial – entrada, meio e saída – que não acompanha essa visão de múltiplas possibilidades. Calatrava não chegou a pensar num espaço que permitisse ao visitante desenhar seus próprios percursos?
Calatrava se inspirou num organismo vivo: as bromélias do Jardim Botânico. Ele trabalha pintando aquarelas. Para o Museu do Amanhã, fez mais de 400 até chegar a essa forma orgânica da bromélia. Em seu interior, ele imaginou uma grande nave, como uma catedral que impressionasse o visitante pela sua grandiosidade. Restava a nós, os desenvolvedores do conteúdo, constituir o metabolismo desse organismo. Nossa missão então era dialogar com esse espaço majestoso da catedral – mais de 100 m de comprimento, por 14 m de largura e 14 m de altura –, modulado pela ondulação do teto, como se ele respirasse. Em seus cinco respiros, serão instaladas as áreas temáticas. A narrativa acompanha essa organização espacial modular do prédio.
Como foi concebida essa narrativa?
A ideia foi montar uma partitura, em que houvesse diferentes tempos – vivace, allegro, largo, andante –, com momentos acelerados, de mais exaltação, outros mais dramáticos, ou de maior contemplação, mais líricos. Dentro dessa concepção, que acompanharia as modulações do teto, criamos cinco grandes áreas temáticas que encarnam o metabolismo do museu. Queremos oferecer ao visitante meios de refletir sobre essa construção de futuros possíveis, a partir de uma experiência sensorial e uma narrativa poética.
Então, há um primeiro momento – o portal cósmico – em que ele é arrebatado da experiência cotidiana e é lançado ao encontro de visões do universo e da natureza que ele não tem em seu dia a dia. A partir dessa experiência sensorial, pode se aprofundar nos conteúdos científicos, dispostos em equipamentos que chamamos de ‘horizontes cósmicos’. São temas como a evolução do universo, a constituição do sistema solar, o funcionamento das estrelas etc. Esse portal cósmico é associado à categoria do ‘sempre’, porque são temporalidades tão extensas que estão fora do nosso cotidiano.
Em um segundo momento, chamado ‘contexto’, é apresentada a maneira pela qual chegamos ao momento atual, o que seria o ‘ontem’. O ‘contexto’ mostra as relações entre as formações da matéria, as organizações da vida e as invenções do pensamento: de que modo certos elementos decisivos se associaram para tornar possíveis modos de funcionamento do sistema solar, do clima, do DNA, da vida, dos ecossistemas, que dessem lugar à formação do cérebro e da cultura. Nessa parte, quatro oceanos indicarão como esses quatro fluxos – o fluir lento dos continentes, mais rápido dos mares, o fluir bem rápido dos ares (atmosfera) e o rapidíssimo da luz do Sol – se encontram para gerir o funcionamento desse sistema como um todo.
A seguir tem um quinto oceano, o da vida, representado pelo que há de comum nos seres vivos, o DNA. Toda a imensa variedade de espécies vivas que encontramos opera a partir de um mesmo código básico. Haverá ainda um sexto oceano, o do pensamento. Nossos cérebros são essencialmente os mesmos há mais de 120 mil anos, mas a partir dessa unidade funcional básica somos capazes de criar a imensa variedade das culturas. Vamos mostrar então como as diferentes culturas em locais distintos e momentos diversos abordam as vivências da humanidade: celebrações de nascimento e morte, alimentação, vestuário etc. Tudo isso corresponde ao ‘ontem’.
O momento seguinte, central, a razão de ser do museu, é uma espécie de grande Stonehenge, com seis menires de 10 m de altura – uma experiência espacialmente impactante –, que nos fala de um fato decisivo: hoje o conjunto da atividade humana sobre a Terra se tornou um fator de transformação em escala planetária. As bases materiais da nossa própria existência se encontram agora modificadas pelo exercício dessa atividade. Esse momento nós chamamos de ‘Antropoceno’, a era em que o conjunto das ações humanas se tornou uma força geológica, comparável à dos vulcões.
Então, o Antropoceno é o nosso ‘hoje’, o momento em que se tornam evidentes os sintomas de nossa presença planetária. Apresentamos as causas que levaram a assumirmos essa feição e os sintomas – modificação da sedimentação dos rios, da biodiversidade, da composição atmosférica, dos regimes do clima. Geólogos do futuro poderão examinar esses vestígios e verificar que houve uma transformação poderosa nesse momento. E quem a realizou? A atividade humana. Este reconhecimento é o fato fundamental que o museu pretende apresentar.
É essa a singularidade do museu?
Exatamente. É mostrar que a partir do hoje, do Antropoceno, se estabelecerão os amanhãs. Não viveremos mais no mesmo planeta que nossos ancestrais viviam, mas num outro planeta profundamente modificado pelo sucesso e excesso de nossa própria espécie. Conceitualmente, o Antropoceno é o fulcro em que o museu se estrutura, o entendimento de que nossa cultura irá prosperar não mais num ambiente natural, mas num ambiente artificial.
As duas áreas seguintes são as que chamamos de ‘amanhã’ e ‘amanhãs que queremos’. Na primeira delas, teremos sondagens, prospecções, cenários, coleções de possibilidades e alternativas, em que o visitante poderá verificar que, se certas ações forem empreendidas, determinados cenários serão mais prováveis. Nos ‘amanhãs que queremos’, o museu quer sugerir ao visitante diretrizes éticas que podem ser resumidas a dois eixos: sustentabilidade e convivência, ou seja, como queremos viver com o mundo e com os outros.
A ideia então é apresentar diferentes cenários possíveis e mostrar que, se a humanidade insistir numa determinada atitude, o resultado será um, mas, se escolher um caminho diverso, o impacto provável será outro?
Sim e, para isso, vamos contar, por exemplo, com os dados – atualizados a cada dois anos – do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], que apresenta três cenários: suave, médio ou agudo. O que é inquietante é que o cenário médio de hoje era o agudo de ontem – verificando-se essa degradação acentuada do clima. Se fizermos uma determinada escolha na área de energia, ou de transporte, isso vai resultar em mudança de cenário no clima, nas cidades, na circulação das pessoas, nas culturas etc.
Então, a ideia é que o visitante possa explorar as alternativas dentro de cada uma dessas áreas de transformação, mas que também possa compreender as relações de afecção mútua. As cinco grandes tendências que o museu vai apresentar são: mudança do clima; aumento da população e da expectativa de vida; integração e diferenciação crescente por meio dos meios de transporte e de comunicação; aumento da quantidade e da diversidade de artefatos e diminuição da biodiversidade; e crescimento do conhecimento.
O visitante entra no museu por um portal cósmico e sai por uma oca, uma casa onde as pessoas se reúnem e celebram os rituais que permitem essa passagem do passado para o futuro. A oca é um lugar sensorial, emotivo, introspectivo, um momento de reconhecimento da individualidade de cada um e do pertencimento de todos a uma coletividade. Ao sair para os jardins, o visitante retorna à baía de Guanabara, uma vista assombrosa. Então, ele vai poder deixar suas impressões, opiniões sobre o amanhã, que serão incorporadas aos conteúdos do museu e servirão de ilustração às rampas de saída para a Praça Mauá. É como se ele saísse cercado pelos desejos e aspirações dos visitantes anteriores. Como o museu terá uma forte presença cibernética, parte do interesse que poderá despertar não é apenas o da sua visitação local, que é indispensável, mas o diálogo que o visitante vai estabelecer com os conteúdos do museu remotamente. Esperamos também que as pessoas possam refazer e aprofundar virtualmente a sua própria visita.
Um churinga – amuleto australiano – deve ser a única peça fixa do acervo. Por que usar um talismã num museu de ciência?
O churinga foi uma descoberta. Segundo o [filósofo brasileiro] Claudio Ulpiano [1932-1999], existem certos instrumentos que podem representar as origens da cultura. O churinga é um dispositivo no qual se registram certas marcas, como num calendário. Em um calendário, transformamos nossa apreensão dos ciclos naturais, dos períodos de tempo na natureza em regularidades espaciais: uma máquina de converter tempo em espaço.
É um dispositivo assombroso, que nenhuma outra espécie tem e que singulariza a cultura humana. As sociedades humanas elaboram esses artefatos para marcar a ligação entre o passado e o futuro – a lembrança dos ancestrais, a herança dos mitos, aquilo que foi construído por indivíduos, mas que se tornou transindividual e é de todos. Sejam totens, talismãs, efígies ou muiraquitãs, cada geração passa para a seguinte a posse daquele repertório de representações, experiências, imaginações, delírios por meio desse bastão simbólico. E o museu é exatamente esse lugar onde o passado flui para se transformar em futuro. E, por uma surpreendente coincidência – Calatrava não sabia da ideia de incluir um churinga no museu –, o formato do prédio é muito similar ao de um churinga aborígene.
Qual é, a seu ver, o maior desafio dessa iniciativa?
Tem múltiplos desafios. O primeiro é não se perder no excesso – temos um cabedal de informações altamente sofisticadas e precisamos tornar esse repertório acessível e explorável por visitantes a partir de oito anos de idade: Wagensberg diz que a partir dessa idade a criança é capaz, já possui um entendimento sobre a linguagem e sobre o tempo, e que a experiência do museu pode impregná-la de forma profundamente educativa. Temos que escalonar os conteúdos para fazer uma aproximação paulatina até o nível que se desejar, do mais superficial ao mais profundo. São 53 experiências que abrangem, sem exagero, todo o conhecimento humano. Os recursos expositivos do museu são organizados segundo três princípios: rigor nos conteúdos, clareza na exposição e articulação com os outros conteúdos.
É necessário grande esforço para tornar o museu vivenciável. Outro desafio é o da atualização constante e o de substituir diariamente o acervo. Contamos para isso com o Observatório do Amanhã, setor que vai receber dados de instituições do mundo todo – Unesco, IPCC, Inpe, Embrapa etc. – que serão atualizados de modo automatizado, por meio de uma capacidade cibernética que chamamos ‘Cerebro’. O terceiro desafio é que o Museu do Amanhã seja um equipamento da cidade e um centro importante de disseminação da ciência no Brasil e na América Latina, e que sirva, numa escala mais ampla, como um meio de afirmação da brasilidade – da nossa singularidade, da nossa novidade, da nossa constituição que é por natureza a do amálgama, temperado com muito sangue e violência, mas da qual surgiu algo diverso, nossa contribuição própria sobre como conviver e como usufruir a alegria da vida. Nossa expectativa – muito ambiciosa – é que o museu seja para todos, para todos no mundo.
Como espera – e deseja – que o visitante saia do museu?
Perturbado. Diferente de como ele entrou. Enriquecido de informações, mas principalmente de reflexões, de ter conseguido apreender certa relação ou linha causal – se dadas ações forem empreendidas, determinadas configurações de futuro tenderão a acontecer. O amanhã está por se fazer, e esse fazer é sempre hoje.